São Paulo, domingo, 11 de dezembro de 1994
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NOOSMANCIA

JÚLIO BRESSANE
ESPECIAL PARA A FOLHA

No tórculo da forma
o alvo cristal do sonho
Gilka Machado
Página a página, linha a linha, diz Jean-Jacques Rousseau: "Cada sentido possui seu próprio campo. O campo da música é o tempo; o da pintura o espaço. Multiplicar os sons ouvidos ao mesmo tempo ou desenvolver as cores uma após outras será mudar-lhes a economia. Colocar o olho no lugar do ouvido e vice-versa."
Mudar-lhes a economia é o que buscamos.
Antonio Vieira, criador da maior música da prosa portuguesa, pensa assim: "Onde o dizer é fazer o ouvir é ver. Suponhamos que diante de uma visão estupenda, saiam os sentidos fora de sua esfera e inaugurem o ver com os ouvidos e o ouvir com os olhos."
Pensando neste "fora da esfera" e numa transformação da economia, faremos a seguinte reflexão: ao fim do conflito entre paganismo e cristianismo no final do século 4 de nossa era (quando após ebulição, irrompe o novo humanismo cristão, que dominará os séculos seguintes) a prática das artes divinatórias (de angústia do futuro), de predição, caem em desuso, em obscuridade. Desaparecem. As artes divinatórias e de predição (que pressupõe uma excepcional acuidade de observação e um poder de dedução que escapa habitualmente e lógica limitada do comum) tinham origem, em sua maioria, no Egito. Egito das altas artes plásticas e do logos hieroglífico. Egito que foi para a Antiguidade o que a Índia foi para o Ocidente moderno. Egito que para Platão era o país onde a vida artística poderia servir de exemplo universal de estabilidade e ordem.
As artes divinatórias, mânticas (de Mânto, filha do adivinho Tirésias, que como o pai recebeu o dom da adivinhação. Foi Sibila no santuário de Delfos) são formas de conhecimento, percepção de sintomas, observação experimental e revelação de diversos fenômenos. São técnicas, receitas, tratados ("quaint and curious volume of forgotten lore", diz E. Poe em "O Corvo") instrumentos de comunicação, de percepção sensível e transmissível dos sinais anormais (o Umsato dos pictogramas assírios). Variegado e interdependente, mesclado, como sempre é o espírito. Estas artes –hoje sufocadas por novas mitologias, por novos mitos que nos pensam– oferecem fascinante recurso para a concepção e criação artística da Imagem; Música; Palavra.
Outras são aí as passagens. Passagens desautomatizantes, inexploradas, inesperadas, imprevistas e, às vezes, explosivas... A imagem é anterior à palavra. Quem cria a imagem é a luz, que precisa de um corpo que a espelhe. O que organiza a imagem é a sombra e a cor. Cor e sombra são música.
Edgar de Bruyne em um livro notável, recorta e mostra como os Padres da Igreja retomando, misturando, trocando Platão, formularam conceitos artísticos de Música-Luz; Imagem-Palavra; Luz-Imagem; Beleza-Luz.
Na busca de novos recursos para a criação de novas tecnologias de produção artística, devemos antepor um movimento de intersecção, de passagem, inverso: procurar "a ignota voz", o novo, o outro nos vestígios do esquecido, do desaparecido, do perdido. Do perdido no espesso nevoeiro da indiferença... Fuga da razão monotônica para o domínio da paixão desejosa de exprimir-se.
A dialética (suprema arte de perguntar e responder) da busca de novas tecnologias de criação da Imagem-Música nos obriga a que quanto mais se avança, no sentido de fragmentar a sensibilidade e a inteligência, mais é preciso recuar às nascentes onde o inteligente e o sensível encontram o curioso. Novo.
Quais são as antigas tecnologias ligadas à criação da Imagem-Música-Palavra e que engendram outras formas de criação?
Será que nesta exposição das artes desaparecidas obtemos alguma coisa? E como obtemos?
Goethe em um corredor de seus diálogos com Eckermann, diz cuidadosamente: "É preciso simpatia pelo que nos é estranho."
Muito notada a escolha crítica e a severidade de Platão com a mântica. Mântica que desborda. Pierre Maxime Schuhl em um texto clássico ("Platão e a Arte de Seu Tempo") atribui a severidade com que Platão julga as artes a sua influência irracional, reconhecida por Górgias, e contra a qual reage com conceitos racionais. Os homens prisioneiros das cavernas tomam as sombras pela realidade...
Nas "Leis", Platão reserva aos feiticeiros punições terríveis: recomenda excluí-los do espaço social, expulsá-los, suprimi-los. Prendê-los e depois privá-los de sepultura. Uma vez morto, será lançado fora dos limites do território. Mais: quem os ajude no sepultamento será perseguido impiedosamente.
Penso eu que por tudo isso devemos prestar boa atenção a estes fora-da-lei, a estes excluídos, pois, as "leis" platônicas, como já foi notado, em sua reversibilidade original tem o dom da duplicidade e do anagramático...
É próprio de nossa natureza servirmo-nos das artes para fazer presente o ausente e representar o que não pode ser percebido. Platão problematiza ou pelo menos dificulta a novidade nas artes apesar dele próprio ser uma novidade. O sentimento que tem Platão da intensa ação que a arte exerce sobre o espírito humano explica sua rigorosíssima atitude para com os artistas. Suas afirmações nos escandalizam e muitas vezes nos revoltam. Mas o problema que Platão nos coloca continua a soar: como pode a arte influenciar o homem a restabelecer o equilíbrio indispensável à existência e, ainda, como formar o gosto do público sem escravizá-lo?
Perdido na noite dos tempos aparece um sinal universal que revela a natureza humana: é a prática da encantação mágica. A encantação é o protótipo da arte musical, do canto, do ritmo. A encantação mágica é a origem comum da música e da poesia.
Noosmancia são as sugestões e intuições falantes da sabedoria, da inteligência, do conhecimento, da observação metódica e experimental. A forma sensível como signo de uma realidade invisível.
Vou enumerar as Noosmancia. Algumas. São algumas páginas de muitos livros...
1) Alomancia: predição feita através da observação da cristalização do sal.
2) Austromancia: é a arte do "vaticínio dos ventos".
3) Capnomancia: estudo da fumaça –sua configuração, cor e espessura– surgida de um fogo espontâneo.
4) Ceraunosmancia: augúrios obtidos da contemplação do céu em dias de tempestade. Os riscos dos raios e o som do ribombar dos trovões são os sinais que conjugam a predição.
5) Catoptromancia: observação dos reflexos da luz da lua em um cristal. Utilizando-se uma superfície espelhada que direcionada para a lua capta os raios lunares projetando-os em um cristal. Das sombras produzidas configuram os vaticínios.
6) Daphnomancia: é a escuta do estalar de galhos de louro em uma fogueira. Quanto maior o ruído maior o agouro... Os gregos chamaram Daphne ao louro porque as folhas deste mantém-se sempre verdes. Com seus ramos eram coroados os vencedores. Pensava-se também ser a única árvore jamais atingida por um raio.
7) Falomancia: arte divinatória praticada sobretudo por mulheres mas não exclusivamente, que consiste em observar "rigorosamente" a ereção de um pênis. A formação e transformação da glande. Sua dimensão, palpitação, calor, coloração e ejaculação sugerem sinais que pressagiam. A "balada do bálano" é a repetição, sincopada, cadenciada, ritmada de certas palavras que produzem excitação sexual.
8) Gelosmancia: arte de desvendar a sensibilidade de alguém pelo tom de sua gargalhada...
9) Lecanomancia: indícios, presságios, conjeturados do movimento e das formas de gotas de óleo vertidas sobre uma superfície ou lâmina de água.
10) Lithomancia: adivinhação feita através das nuances de cor das pedras preciosas.
11) Metosmancia: arte de desvendar a personalidade de alguém através dos traços de sua testa.
12) Miomancia: augúrios deduzidos dos gritos produzidos por gatos e ratos...
13) Oculomancia: forma de conhecimento e predição obtido pelo estudo e observação da cor, forma e brilho dos olhos.
14) Pegomancia: das bolhas d'água que brotam de uma fonte visionam-se vaticínios.
15) Quiromancia: é a linguagem divinatória dos traços gerais e da forma das mãos.
16) Phyllorhodomancia: adivinhação que consiste em fazer estalar pétalas de rosa na palma das mãos e de acordo com altura do som emitido (pelo estalo) intui-se o agouro.
17) Sideromancia: das formas da fumaça que saem da combustão de uma palha queimada por ferro em brasa, visiona-se o futuro.
18) Spodomancia: vaticínios obtidos pelas cinzas ou fuligem deixados por uma fogueira.
19) Telepatia: é a arte de comunicar idéias, sentimentos e mesmo ações à distância sem meios intermediários visíveis ou invisíveis e além do alcance de nossos sentidos. Através da distância, das trevas, dos obstáculos, descobre-se, comunica-se.
20) Tiromancia: augúrios pressagiados na contemplação dos buracos de um queijo.
21) Veneromancia: predição obtida pela observação e contemplação de uma vulva. Seu formato, sua cavidade, sua unidade e sua umidade. A produção e secreção de seus líquidos (humores), inclusive o mênstruo, a configuração dos pêlos que a envolvem e sua analogia com diversos fenômenos da natureza. Sua semelhança com algumas flores como, por exemplo, a orquídea.
22) Xilomancia: conhecimento e adivinhação que emergem de várias formas, espécies e texturas da madeira.
Existe um vasto catálogo e uma vasta bibliografia dos inúmeros métodos e sistemas de reflexão e prática divinatórias. Hoje, a esta extensa listagem incluiríamos o cinema: a arte (cinematográfica) da compreensão e apreensão da luz e da ilusão do movimento, imagem imaginante, cinema é eterno deslimite, a fixação sensível e a revelação química de uma mancha-pensamento. Signo expressivo de certos conteúdos mentais. Cinema música da luz. CINEMANCIA.
P.S.: O Brasil, país da macumba, deverá despertar algum dia para as artes mânticas (de outra economia, felizmente) de seu passado pluricultural. Tal qual a flora amazônica, que quando finalmente descoberta e decifrada mudará a higiene da humanidade, as nossas artes divinatórias renascidas multiplicarão, interligando, outras técnicas às fontes de alimento da expressão artística e cultural. O Brasil perdido (ex-Éden) terá aí seu festim da imortalidade...

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