São Paulo, sexta-feira, 16 de dezembro de 1994
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Brasil deveria aprender lições de Emerson

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Há livros de imensa qualidade literária, autores absolutamente geniais –mas que por isso mesmo nos intimidam, nos afastam um pouco deles. São mais raros os livros que estabelecem vínculos de amizade com o leitor. Os ensaios de Montaigne, por exemplo: lendo-os, não ganhei um grande escritor a mais; ganhei um amigo.
Desconfio que não seria nada fácil ser amigo de Dostoiévsky ou de Beethoven. Mas com Montaigne a despretensão pessoal, a confidência da prosa, a espontaneidade do pensamento me dão vontade de tê-lo conhecido pessoalmente.
Um outro amigo está à disposição do público brasileiro. Trata-se de Ralph Waldo Emerson (1803- 1882), cujos "Ensaios (Primeira Série)" acabam de ser editados pela Imago, na personalíssima e excelente coleção "Lázuli".
Emerson não é um amigo fácil. Os melhores amigos raramente são fáceis, aliás. Sua prosa tende um pouco para a peroração, para o edificante, para o educacional. Os títulos de seus ensaios são pouco atraentes: "História", "Amor", "Autoconfiança".
Desconfiamos que haverá algo de pastoso, de oratório, de solene em textos com títulos desse tipo. E há mesmo. Não é como Montaigne, cujo ceticismo surgia como um passeio do eu através do mundo. Sintoma de autocomplacência talvez, mas sobretudo exercício de graça, de improviso, de bem-estar intelectual.
O ensaio emersoniano tende a ser mais monocórdio. O escritor Herman Melville, num momento de mau humor, disse que Emerson era uma espécie de Platão falando pelo nariz.
Emerson tinha estudado para ser ministro protestante; desistiu, isolou-se, ganhou a vida como conferencista e inventou sua própria religião.
É uma religião ao mesmo piedosa e herética. Com todo o aspecto de "pregador" que aparece em seus ensaios, sabemos que ele está pregando a nosso favor; é um libertário, não um divulgador de dogmas.
Causa espanto o grau de heresia e de liberdade a que pode chegar este pacato cidadão provinciano, nos Estados Unidos do século 19. Em "Autoconfiança", seu ensaio mais impressionante, Emerson chega a defender o desprezo às obrigações familiares, o afastamento do círculo de amizades, a ausência de qualquer dever com relação ao Bem, à Caridade. Culpa-se por dar esmolas a um mendigo:
Não tenho obrigação, diz ele, de remediar a vida dos pobres. "Acaso são meus pobres? Eu vos digo, tolo filantropo, que dou de má vontade o dólar, os dez centavos, o centavo para tais homens que não pertencem a mim e a quem não pertenço... embora eu confesse com vergonha que por vezes sucumbo e dou o dólar, ele é um dólar iníquo, que com o tempo terei a virilidade de recusar."
"Virilidade" é sem dúvida um termo chave no pensamento de Emerson. Significa, acima de tudo, a coragem de ser o que se é. "Nenhum homem pode violar sua natureza." Se esta conduz ao mal, tudo bem. O pior mal é fingir que não somos o que somos.
"Quem deseja ser um homem tem de ser um dissidente." "Nada é sagrado, a não ser a integridade de nossa própria mente." "Absolve-te a ti mesmo, e o mundo será teu."
Os textos de Emerson adquirem, assim, o tom da exortação. Movem-se ainda no âmbito do sermão religioso –mas anulam todo prejuízo moral que tenhamos dentro de nos.
Não por acaso, Friedrich Nietzsche admirava muito Emerson. O ensaísta fez um grande favor à humanidade: aboliu a noção do pecado e da culpa. Nietzsche pretendeu abolir todo o resto. O contraste é enorme, todavia, entre os dois autores. Os elogios à liberdade individual não têm, nos ensaios de Emerson, o tom de fanfarronada vulgar, o plebeísmo, a grosseria típicos de Nietzsche, quanto mais "aristocrático" este pretende ser.
É que Emerson representa ideais ao mesmo tempo individualistas e democráticos. São os ideais americanos, elevados ao máximo de beleza e dignidade.
Pois, ao lado desse elogio extremo do indivíduo, desse descompromisso básico com os deveres sociais, Emerson advoga uma espécie de "democracia do espírito", claramente tributária da situação intelectual dos Estados Unidos no século 19. Província acanhada do pensamento, a sociedade em que Emerson vivia tinha algo de "nouveau riche", de aquisitivo, de ávido frente aos bens culturais do Ocidente.
Deriva daí, imagino, a confiança de Emerson no fato de que tudo –a História, Shakespeare, a Natureza, a Literatura Universal– conspira a nosso favor. "O que Platão pensou", diz Emerson, qualquer homem "pode pensar; o que um santo sentiu, ele pode sentir".
Tudo, portanto, está disponível para nós. Vocação imperial e aquisitiva face à cultura. Vocação generosa, entretanto, face ao indivíduo. Nada mais americano.
Nada mais bonito, todavia. Emerson representa o que de revolucionário, até hoje, sobrevive nos Estados Unidos. Para nós, brasileiros, sua lição é fundamental. Vivemos numa mistura de fracasso, criminalidade e culpa.
Nossa inferioridade histórica –nunca fomos a potência mundial que os Estados Unidos de Emerson se preparavam para ser– tem consequências no que tange à inferioridade individual, à ausência de autoconfiança (que, entre nós, só se manifesta quando o sujeito é um absoluto canalha), à ausência de dignidade.
Emerson também vivia numa sociedade indigna. Soam algo grandiloquentes suas palavras sobre a alma, a humanidade, a grandiosidade do indivíduo. Falsas, talvez. Mesmo assim, acho que correspondem a algo de real. Ganharíamos, enquanto brasileiros, se acreditássemos um pouco no que ele diz.

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