São Paulo, sábado, 17 de dezembro de 1994
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Tom reaviva desejo de manter ruas e casas

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

O açodamento emotivo e brutal com que o prefeito do Rio, César Maia, arrancou sem consultar ninguém as placas da avenida Vieira Souto e colocou em seu lugar placas com o nome de Tom Jobim, nos leva a considerar o problema de manter à luz do dia e à vista do povo o nome daqueles que, como Tom, nos fizeram maiores e melhores.
Alguns anos atrás, quando fiz uma conferência na Casa de Mário de Andrade, em São Paulo, me lembrei da famosa lamentação de Mário, de que morava ali, na rua Lopes Chaves, mas ignorava quem tivesse sido o dito cidadão. Perguntei, então, à encarregada do imóvel, já então tombado, quem afinal tinha sido Lopes Chaves. Ela me olhou, confusa, e respondeu que não sabia mas ia apurar. Eu lhe disse que não fizesse tal coisa, já que assim se mantinha a tradição de não saber quem fora o emplacado da rua de Mário. O importante, acrescentei, era que ao contrário dos grandes brasileiros, Mário pelo menos não tinha ficado ao relento depois de falecido.
Como aconteceu, por exemplo, com Machado de Assis, que ironicamente é, a cada dia que passa, o nome de brasileiro que mais se inclui entre os dos grandes na literatura mundial. Machado viveu, desde o ano de 1883 até sua morte em 1908, no número 18 da rua do Cosme Velho, por onde se prolonga a rua das Laranjeiras, no Rio.
Quando menino, Alceu Amoroso Lima mais de uma vez avistou o já famoso bruxo do Cosme Velho quando saía de casa para tomar o bonde de burros que o levava à repartição. O número 18 era um sobradinho bonito que, se tivesse sido tombado, guardaria um ar bem catita entre os prédios tipo Rambo que congestionaram a velha rua. Infelizmente a digna casa burguesa que Machado conseguiu comprar com os magros ordenados da Secretaria da Agricultura e os magérrimos caraminguás que lhe vinham como direitos autorais, foi friamente demolida.
Comecei a remoer essas melancolias ao ver que os franceses, que sempre foram bem aquinhoados de gênios, deles cuidam muito bem quando morrem. Estava eu lendo "Peixe na Água" de Mario Vargas Llosa e constatando com enlevo que ele, como eu, como tanta gente mais, foi um obcecado e apaixonado leitor de Alexandre Dumas, sobretudo o da trilogia que imortalizou o gascão d'Artagnan ("Os Três Mosqueteiros", "Vinte Anos Depois", "O Visconde de Bragelonne") quando deparei com a notícia de que em Marly-Le-Roi, nos arredores de Paris, acabava de ser recuperado e aberto ao público o castelo que lá se fizera construir Dumas.
Como Balzac, Dumas ganhou Senas e esbanjou Amazonas de dinheiro. Aliás, burguês e imperialista o século 19 compeliu muito seus homens de sucesso a montar imperiozinhos particulares. Esses sonhos resultavam em geral em bancarrota, como ocorreu com Carlos Gomes e seu palácio italiano de nome Brasília.
Acontece que os países que amam aqueles que os engrandecem fazem por eles (pelo menos depois que morrem) qualquer sacrifício. Crivado de dívidas, Dumas teve que vender seu castelo de Marly. Mais tarde, o governo francês não só o adquiriu, impedindo que fosse derrubado, como tratou de recriá-lo por dentro, adorná-lo e mobiliá-lo, como se quisesse atrair o próprio Dumas (morreu em 1870) a morar nele de novo.
Na cidade de Paris podemos não só estabelecer relações com fantasmas franceses, como entrar em contato com os de forasteiros que fizeram da cidade uma segunda pátria, tipo Picasso e Gertrude Stein. Aliás, do outro lado dos mares Cuba incorporou Ernest Hemingway ao seu patrimônio cultural, preservando-lhe a casa e lembrando, no centro de Havana, os bares que eram um segundo gabinete de trabalho do romancista, como o Bodeguita del Medio e o La Floridita.
Seria impossível transformar em museus todas as casas de celebridades nas cidades grandes, mas é fácil relembrar um morador ilustre colocando na fachada de uma casa ou prédio uma singela placa, com nome e datas. Em Londres, por exemplo, é indispensável visitar a casa em que morou e deu consultas Sigmund Freud, em Hampstead, na qual a gente primeiro cede ao hipnotismo das estatuetas antigas –deuses, amuletos, animais mitológicos– que cercavam esse outro bruxo, bruxo de Viena, e em seguida, se não tomar cuidado, acaba trazendo recalque e complexos entre os "souvenirs" adquiridos na loja do rés-do-chão da casa.
O remédio é sair em busca do materialismo objetivo de Marx no bairro dos restaurantes populares de Londres, o Soho. Lá podemos visitar os cômodos em que ele morou. Ficam no atual restaurante italiano Quo Vadis, em Dean Street. Mas não esqueçamos, no caminho de Hampstead ao Soho, de olhar as sóbrias placas azuis em portão de casa ou prédio, assinalando a passagem por ali de alguém inesquecível.
Esse modesto uso de placas, desses azulejos de saudade, é o que estão prometendo implantar entre nós. Só nos quatro quilômetros da praia Leme-Copacabana, por exemplo, dois funcionários da Prefeitura, armados de uma broca e de uma sacola de parafusos, podem dar imortalidade e graça a edifícios que abrigaram seres humanos de alta raridade. Na praia do Leme número 900 teve seu último pouso na terra Cândido Portinari. No número 99 da rua Gustavo Sampaio –paralela à praia do Leme– morou também até sua morte Clarice Lispector. No outro extremo da praia, no fim de Copacabana, à rua Conselheiro Lafaiete número 60 morou, e ali também morreu, Carlos Drummond de Andrade. E finalmente, no finzinho de Copacabana, rua Francisco Otaviano 33, João Guimarães Rosa morou e recebeu das alturas "Corpo de Baile" e "Grande Sertão: Veredas".

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