São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 1994
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Moralismo e hipocrisia

MARCELO LEITE

O caso da Escola Base já se tornou um antiparadigma jornalístico. Com o empenhado concurso da imprensa, donos e professores do estabelecimento paulistano foram acusados, no final de março, de abusar sexualmente de crianças sob sua guarda.
Nada ficou provado. TV e jornais enfiaram o rabo entre as pernas; aqui e ali, iniciou-se uma duvidosa autocrítica.
Para tentar extrair lições do episódio, a Folha organizou há 12 dias um seminário interno. O encontro foi relatado na edição do último domingo, em reportagens que ofereciam versão algo amenizadora das falhas jornalísticas.
No meu entender, ela estava genericamente correta, ainda que com alguns deslizes pontuais (leia abaixo a opinião de Richard Pedicini, o único acusado ainda não inocentado).
O rápido encerramento do caso, com o arquivamento do principal inquérito, constrangeu jornalistas a um doloroso mea-culpa. Até a realização do seminário, moralismo e hipocrisia se defrontavam, impedindo um real aprendizado.
De um lado, jornalistas arvorados em juízes acusavam colegas de irresponsabilidade e leviandade. Como se pudessem dar alguma garantia de que, submetidos a idênticas condições de temperatura e pressão, não tomariam as mesmas e equivocadas decisões.
Para quem acha que foi coisa de Terceiro Mundo, eis a opinião de Jean-Michel Brigouleix, diretor do jornal France Soir, um dos entrevistados pela Folha para subsidiar o seminário: Sejamos honestos. Se houve o indiciamento dos suspeitos, teríamos tido a mesma atitude da imprensa brasileira.
De outro lado, alguns dos responsáveis pelas páginas de acusações infundadas escudavam-se em formalismos. Afinal, diziam, aquelas pessoas tinham sido acusadas por autoridade policial. A imprensa teria unicamente cumprido seu papel de informar.
Não cumpriu, como continua não cumprindo. Informar não quer dizer apenas registrar os fatos, mas investigá-los. Mais ainda quando são versões, apresentadas por integrantes de uma das instituições mais suspeitas deste país, a polícia.
Nas reportagens do último domingo, por exemplo, a Folha dedicou ralas cinco linhas à situação atual de um dos principais responsáveis por essa história grotesca de desrespeito a direitos civis: o delegado Edélcio Lemos, titular do 6º Distrito Policial. Ei-las:
"O delegado Lemos deixou de ser o titular do DP da Aclimação para assumir função menos importante, a de responsável pelas cartas precatórias no 78º DP (Jardins)."
É tudo. Nada mais se informa sobre a "autoridade" que anunciava, sob a luz encorajadora dos refletores de TV, sua convicção sobre a culpa dos acusados. Isso com base em um laudo do Instituto Médico Legal (IML) que supostamente comprovaria penetração anal em uma das crianças.
Na realidade, o laudo registrava fissuras que, dias depois se revelaria, eram compatíveis até com excreção de fezes ressecadas. Foi porém apresentado como prova cabal, e assim aceito pelos jornais. Com essa evidência frágil e depoimentos não menos dubitáveis de crianças em idade pré-escolar, pessoas foram presas e submetidas à execração pública.
Esse delegado sofreu ou está sofrendo algum tipo de processo disciplinar? Se ficar comprovado que ele exorbitou de suas funções, terá de encarar uma punição proporcional? A Folha não informou.
Na minha avaliação, conforme diagnostiquei no seminário, foi um combinado de precipitação policial e jornalística que engendrou o calvário dos proprietários e empregados da Escola Base. Cabia porém à imprensa romper esse círculo infernal, pondo o delegado e suas informações em xeque.
Por falta de preparo, empenho ou tempo, essa contra-investigação não aconteceu. O jornal se limitou a seguir normas protocolares, como reconhecia a reportagem do domingo passado:
"A Folha foi fiel aos fatos, colocou as acusações sempre no condicional (acusados de, suspeitos de), mas se restringiu às fontes oficiais, principalmente as declarações dos delegados que acompanharam o caso e do advogado de acusação."(A inclusão deste último na condição de "fonte oficial" é um erro evidente.)
O seminário resultou em apenas duas recomendações à Direção de Redação da Folha: incentivar a capacitação técnica dos jornalistas que cobrem a área policial, para que possam questionar mais precoce e eficazmente as ações e informações policiais; estudar a não-divulgação de nomes de envolvidos em inquéritos policiais.
Muitos dirão que é pouco, pouco demais em face do prejuízo causado àquelas pessoas. Concordo, mas estou convicto de que alguns erros jornalísticos –assim como erros judiciais– são intrinsecamente irreparáveis. Deitar lágrimas de crocodilo não vai melhorar sua situação.
Por isso também defendo que, para além de um ou dois procedimentos racionais e necessários, só uma consciência aguda da destrutividade inerente ao jornalismo poderá pôr-lhe freios.
Talvez esse seja o único, o verdadeiro poder da imprensa: destruir reputações.

No dia seguinte ao da publicação da reportagem sobre o seminário, recebi a visita de um homem angustiado e perseverante: Richard Pedicini, 37, norte-americano. Com mãos trêmulas, entregou-me carta de cinco páginas desancando os textos do dia anterior. Só para dar uma idéia de seu estado de espírito:
"Quem acompanhou o caso da Escola Base de longe, lendo o material de domingo sobre o seminário deve achar que a Folha fez uma cuidadosa autocrítica. Quem acompanhou o caso por perto, ou por dentro, termina a leitura com uma pergunta: no final do seminário serviram pizza?"
Pedicini conhece o caso por dentro, inclusive da prisão. Passou nove dias trancafiado, igualmente acusado de abuso sexual. Com uma diferença: seu inquérito ainda não foi arquivado. Não fui inocentado como os outros seis.
O norte-americano foi levado no arrastão histérico da Escola Base. Sua casa no mesmo bairro da Aclimação era frequentada por garotos, que tomavam banhos na piscina, alguns deles nus, e assim foram fotografados. Uma denúncia anônima de que ali ocorreriam orgias levantou a suspeita de que seria a casa em que as crianças da escola teriam sofrido abuso.
Na prisão em flagrante de Pedicini, a polícia apreendeu 240 fotos inicialmente descritas como "pornográficas". Examinei uma a uma, no jogo que me foi apresentado por ele, e não encontrei nenhuma que merecesse cabalmente tal qualificação. Há muitas crianças nuas, na sua piscina e em uma praia de nudismo perto de Nova York.
Pedicini reclama que a reportagem de domingo passado, mais uma vez, não lhe faz justiça (na realidade, ele só é mencionado de passagem). Nega que a Folha tenha usado sempre o condicional nas acusações, e exemplifica com título e subtítulo (linha-fina) do dia 13 de abril: "Criança liga americano a abuso em escola"; "Alunos da Escola Infantil Base reconhecem casa de Richard Pedicini, preso por corromper menores."
O próprio texto da reportagem de abril afirmava que o delegado Gerson Carvalho, substituto de Edélcio Lemos (afastado), não estava convencido do reconhecimento, mas endossava a informação. Outra queixa: quando o reconhecimento foi desmentido pela verdadeira fonte (justamente o advogado das crianças, Arthur Troppmair), a Folha deu a informação no meio de uma reportagem, sem um título específico.
O nome do advogado não foi mencionado na reportagem de domingo passado. Na interpretação do norte-americano, o jornal o estaria poupando. "A Folha chama este advogado de fonte oficial e o tratou como se fosse. Por quê?"
Pedicini contesta ainda um dos títulos publicados há uma semana, segundo o qual os acusados de abuso buscam anonimato. Pode ser que seis busquem anonimato. O que o sétimo busca é justiça.
Ele tem razão em muitas de suas observações. Mas elas constituem até certo ponto detalhes (espero não parecer ofensivo). Não modificam o essencial da avaliação do caso feita durante o seminário, nem comprometem inteiramente as reportagens do domingo anterior, como ele –em sua justa revolta– parece entender.

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