São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Constituições não são periódicos para serem constantemente reeditadas

OSIRIS LOPES FILHO

Pelo último pronunciamento do futuro presidente da República Fernando Henrique e pelas propostas de governo contidas no livro "Mãos à Obra Brasil", que consagra o seu projeto de desenvolvimento para o país, vamos em breve assistir o desenrolar de várias propostas de reforma constitucional, principalmente na área tributária.
É preciso tomar cuidado com tais propostas de reforma constitucional, pois, regra geral, correspondem a um traço marcante da atuação dos governantes e dos tecnocratas no Brasil.
Entre executar um processo de mudança mais modesto, eficaz e simples, baseado na atuação do dia-a-dia, não resistem à tradição histórica e à tentação de realizar algo grandioso, ambicioso.
E consomem enorme energia nessa tarefa hercúlea de iniciar a reconstrução nacional pelo que supõem serem as bases da estrutura institucional, mas que, algumas vezes, estão em nível tão elevado, que mais se identificam com o telhado e a cumeeira da edificação do que com os alicerces do espetacular empreendimento realizado.
Algumas modificações tributárias que se pretende introduzir na Constituição, lidos e seguidos alguns colaboradores da Folha, como Eron Arzua e Geraldo Ataliba, que sobre isso escreveram há pouco tempo, poderiam ser feitas por legislação infraconstitucional, sem necessidade de se alterar a Constituição.
Por exemplo, dentre as medidas preconizadas pelo futuro governo para a agricultura consta no item "Carga Tributária" do livro "Mãos à Obra Brasil", o compromisso de "propor ao Congresso Nacional emenda constitucional concedendo imunidade tributária para insumos, máquinas, tratores e implementos agrícolas".
Os dois impostos que incidem sobre tais bens de capital são o IPI e o ICMS. Ambos são considerados impostos não-cumulativos pela Constituição (art. 153, parágrafo 3º, inciso 3º e art. 155, parágrafo 2º, inciso 2º).
A legislação ordinária de tais impostos tem adotado, como regra geral, o crédito físico para assegurar a não-cumulatividade. Geram direito a créditos, matérias-primas, produtos intermediários e o material de embalagem que compõem o produto final ou servem ao seu acondicionamento.
O crédito financeiro, que alcança os bens de capital, vale dizer, predominantemente as máquinas que irão produzir os bens finais, geram crédito, desde que mencionados em portaria ministerial. A relação desses bens é muito modesta e reduzida.
Uma alteração significativa para modernizar a indústria nacional, reduzindo seus custos e, portanto, o preço das mercadorias, é acolher irrestritamente o crédito do IPI e do ICMS. Isto é, todos os produtos, desde máquinas até insumos, gerariam créditos desses impostos.
Os países do Primeiro Mundo que adotam o imposto sobre valor agregado praticam tanto o crédito físico quanto o crédito financeiro. Isso incentiva o investimento, tornando-o mais barato e, em alguns casos, alivia o capital de giro das empresas.
Para dar créditos dos bens de capital não é necessário nenhuma reforma constitucional. Basta editar uma lei ordinária federal, dispondo sobre o IPI e, no caso do ICMS, alterar-se, via lei complementar, o Código Tributário Nacional, ambos adotando o crédito financeiro.
É evidente o efeito multiplicador de investimentos decorrente da adoção dessa medida, que desde muito deveria ter sido implementada. A indústria nacional aplaudiria, conseguindo incentivar a produção que, por sua vez, aumentaria a oferta agregada nacional, sem ser necessário adotar facilitações à importação, que muitas vezes acarretam o fechamento de fábricas no país, agravando o nível de desemprego.
Uma outra medida preconizada pelo futuro governo é a de "propor ao Congresso Nacional emenda à Constituição concedendo imunidade do ICMS sobre as exportações de produtos agrícolas, com compensações aos Estados pelas eventuais perdas de receita".
É matéria de difícil composição. A Constituição anterior concedia imunidade do ICM para os produtos industrializados destinados à exportação. O conceito de industrialização teve uma extensão tão elástica e complacente que frangos, peixes, crustáceos e supercongelados foram considerados produtos industrializados.
Idem para os peixes ornamentais em saquinhos plásticos. Dois Estados, Rio Grande do Norte e Ceará, tiveram suas finanças seriamente abaladas quando o algodão foi considerado produto industrializado.
Daí a reação dos Estados, cuja atividade econômica baseia-se no setor primário, que conseguiram incluir na Constituição que a imunidade do ICMS só alcance realmente produtos industrializados. Os "semi-elaborados definidos em lei complementar" ficam excluídos dessa imunidade.
Incluir na imunidade do ICMS não apenas os semi-elaborados, mas também os produtos agrícolas primários, ocasionará um choque político e exigirá uma grande negociação nacional no âmbito da Federação. Talvez fosse mais produtiva a utilização da lei complementar para gradativamente ir incorporando outros produtos do elenco dos submetidos à não-incidência do ICMS.
Basta utilizar a competência prevista no art. 155, parágrafo 2º, inciso 12º, alínea "e" da Constituição, que prevê a disciplinação por lei complementar da exclusão de incidência do ICMS nas exportações de serviços e outros produtos, além dos industrializados.
Dito de outra forma, por lei complementar o Congresso Nacional pode estabelecer não-incidências do ICMS para os produtos que desejar. Isso pode ser feito de forma gradativa, numa ampla negociação federativa, sem os efeitos traumáticos de uma regra geral que estabeleça a imunidade do ICMS para todos os produtos exportados, sejam industrializados, semi-elaborados ou primários, com a rigidez típica da Constituição.
Além disso, o aperfeiçoamento democrático das finanças públicas está a introduzir um novo componente nessa matéria de renúncia à arrecadação. Afinal, quem pagará a conta? De algum lugar deverão advir os recursos para cobrir a perda.
Está em jogo um ponto essencial ao aprimoramento da justiça fiscal no país. Se o dinheiro é pouco, qualquer renúncia à arrecadação implicará aumento de carga tributária global ou de algum setor específico.
O debate acerca da distribuição efetiva da carga tributária será seguramente um dos temas fundamentais a serem desenvolvidos na nossa ainda incipiente democracia. A permanência do sistema arrecadatório incidente majoritariamente sobre o trabalhador brasileiro, aliviando-se os ricos, dotados de maior capacidade contributiva, constitui suprema injustiça que não pode subsistir.
E que, em realidade, constitui ponto decisivo do programa de governo proposto, ao denunciar que "não é justo que apenas alguns poucos contribuintes sustentem o Estado. Todos devem contribuir, de acordo com sua capacidade, para o financiamento dos serviços prestados pelo governo à sociedade. Muitas vezes pensa-se que os pobres não pagam impostos em nosso país. E isso não é verdade" ("Mãos à Obra Brasil", pág. 191).
Um estudo cuidadoso da Constituição demonstrará que ela estabelece os instrumentos para a adaptação à mudança. Em muitos casos, não há necessidade de reformá-la. Basta exercitar as possibilidades que ela encerra.
Uma dívida das legislaturas que se seguiram à promulgação da Constituição foi a de não a terem disciplinado para lhe dar eficácia.
As Constituições não foram concebidas como periódicos a serem constante e permanentemente reeditados. Têm um sentido de estabilidade, de permanência e de segurança. Quanto menos alterá-las, mais seguro estará o cidadão de seus direitos e maior estabilidade terão as instituições do país.
Se há um caminho mais fácil, não se deve escolher o mais difícil e espinhoso para o governo cumprir seus compromissos.

OSIRIS DE AZEVEDO LOPES FILHO, 55, é professor de Direito Tributário e Financeiro da Universidade de Brasília, advogado e ex-secretário da Receita Federal.

Texto Anterior: Boas novas; Feliz Natal; Bom semestre; Quase o triplo; Operação de tesouraria; Ainda assim; Integração difícil; Na contramão
Próximo Texto: Uma liderança política de novo tipo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.