São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 1994
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Uma liderança política de novo tipo

ANTONIO KANDIR

Há pronunciamentos de governantes que são só peças retóricas. Integram-se à mesmice dos discursos políticos que nada dizem.
O pronunciamento do presidente eleito Fernando Henrique Cardoso no Senado, na semana passada, não pertence a essa classe. Ao contrário, é de uma espécie diferente, não muito comum.
Por não escamotear os problemas, dizer o que precisa ser feito e indicar rumos com clareza, expressa a possibilidade de afirmação de um novo tipo de liderança política no Brasil, democrática e não-populista. Quem conhece um pouco da história brasileira, sabe aquilatar a importância do fato.
Tivemos quatro presidentes reformadores após a República Velha. Três empreenderam seus programas sob regime autoritário (Vargas, Castelo Branco e Geisel). Juscelino foi a exceção, do ponto de vista do estilo e do regime político. Mas seu governo, apesar do legado positivo para a estrutura industrial, teve também a marca do populismo econômico.
Essa comparação me faz lembrar da frase famosa, ligeiramente modificada, "o homem é o homem e as suas circunstâncias". O tipo de liderança política de Fernando Henrique Cardoso só se tornou possível porque o Brasil mudou. Tem ainda que mudar muito, é verdade. Mas já não cabe mais, como nos piores momentos da crise, projetar para o futuro longínquo a possibilidade de mudança.
A opinião pública impôs aos políticos novas exigências, repelindo práticas antes aceitáveis, quando não valorizadas, como a de "empurrar os problemas com a barriga" e "dizer uma coisa e fazer outra". As lideranças políticas que não souberem captar o sentido e o alcance dessa mudança estão ameaçadas de declínio.
FHC soube captá-los. Mostrou-o na condução do Plano Real, na campanha e no período de transição. Seu pronunciamento da última quarta-feira é prova disso.
Nele, FHC sublinhou o ponto de ruptura fundamental, marca de todo governo reformista. Disse textualmente: "Resta um pedaço do nosso passado que ainda atravanca o presente e retarda o avanço da sociedade. Refiro-me ao legado da era Vargas, ao seu modelo de desenvolvimento autárquico e ao seu Estado intervencionista".
Inscreveu assim seu governo num impulso de transformação iniciado no início dos anos 90 e que não perdeu fôlego desde então. Referiu-se ao governo anterior ao do presidente Itamar. Falava do governo Collor, anotou que ali se iniciaram, apesar dos muitos pesares, transformações sem as quais o Brasil não estaria onde está. Estaria pior, sem rumo.
Trata-se da reafirmação inequívoca do caminho a seguir, que pode ser sintetizado em uma frase do presidente eleito.
Esta, a seu modo, dá a chave de qual o lugar do governo FHC no embate entre neoliberais e nacional-desenvolvimentistas: "Só há privatização correta quando se reforça a autoridade pública".
Esse mesmo "lugar" original aparece na passagem em que o presidente eleito tratou da questão cambial, quando mais uma vez ficou claro que o Brasil vai perseverar num caminho distinto do percorrido por outros países do continente latino-americano, em seus processos de estabilização.
Caminho compatível com uma estrutura industrial integrada e dinâmica, que tem sabido responder aos desafios positivos da abertura econômica.
Enfim, o protagonista e as circunstâncias –nós economistas diríamos "as estruturas"– apontam para anos de intensa inovação em relação ao nosso passado e, sem exageros ufanistas, à própria experiência externa dos dias que correm. A promessa está pronta para fazer-se realidade. Falta, porém, concretizá-la.
E nós, anotou Fernando Henrique, "temos um tempo limitado para tomar as medidas necessárias para dar continuidade ao processo. O povo, que hoje ensaia uma reconciliação com o poder, será duro conosco amanhã se sofrer mais uma desilusão".

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