São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 1994
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O equilíbrio entre dois imperialismos

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Há uma maneira cristalina de se entender a história da diplomacia brasileira: ao lado da Bacia do Prata e da delimitação de fronteiras, foram 172 anos de tentativas de alinhamento ou dissociação das esferas de influência da Inglaterra e depois dos Estados Unidos.
Os britânicos foram no século 19 o grande pólo de pressões coloniais. Antes de 1822, Portugal já estava de certo modo avassalado e o Brasil, com o Sete de Setembro, herdaria essa condição geopoliticamente subalterna.
Londres impunha, mundo afora, "tratados" que traduziam seus interesses estratégicos e comerciais. Com o Brasil, o primeiro deles foi negociado no bojo do reconhecimento da independência.
Em nome do livre comércio, estipula uma alíquota de apenas 15% para seus produtos comercializados no mercado brasileiro. E, a exemplo da França, também exige que um foro especial julgue seus cidadãos residentes no Brasil de acordo com a legislação britânica. É o conhecido "juízo conservador da nação inglesa".
A questão da alíquota preferencial representava a impossibilidade de o Império legislar sobre sua maior fonte de arrecadação tributária. Além disso, sem instrumentos de protecionismo, a incipiente indústria local era condenada à dimensão de simples artesanato.
A situação se prolonga desse modo até 1844, quando, 22 anos depois da independência política, o Brasil –expirando o tratado bilateral– passa a ter controle pleno de sua alfândega.
Os ingleses tinham uma política para o Prata, baseada no princípio da livre navegação da bacia. Interferiram, assim, para que o Brasil renunciasse ao Uruguai (anexado por d. João 6º) e para evitar hegemonias regionais.
Outro ponto de tensão anglo-brasileiro estava na importação de escravos. O Brasil, pressionado, aprovou em 1831 lei suprimindo o tráfico, que no entanto prosseguiu de forma clandestina (50 mil africanos ao ano, até 1850).
Uma das retaliações de Londres foi a Lei Aberdeen (1845-1869), pela qual tripulantes de navios negreiros aprisionados, mesmo em portos brasileiros, seriam julgados pelo almirantado britânico.
O último grande contencioso surgiu, já na República, com a delimitação das fronteiras com a Guiana. A questão foi submetida ao arbítrio da Itália, que, salomonicamente, dividiu ao meio a área em litígio. Com isso, atropelou o princípio do "uti possidetis" (a terra é da nação que a ocupa), que prevalecia nas demarcações desde o Império.
A hegemonia britânica perderia definitivamente espaço só ao fim da Primeira Guerra Mundial, com a ascensão dos Estados Unidos.
Ela se iniciou em 1823, quando o presidente Monroe anunciou sua "doutrina" que, de um lado, dissuadia a Espanha de recolonizar a América e considerava uma agressão à soberania norte-americana qualquer ato europeu de força contra a América Latina.
Mas, de outro lado, essa "impertinência internacional" (Bismarck) atribuía unilateralmente a Washington o papel –por vezes amplamente exercido– de polícia do hemisfério.
O fato é que sob d. Pedro 2º já se falava abundantemente em panamericanismo e os Estados Unidos se tornavam o grande importador do café. Mas o Brasil, única monarquia do continente, tinha um perfil institucional que só em novembro de 1889 permitiu maiores analogias.
E, de fato, com a Proclamação da República, a diplomacia brasileira sofreu uma recaída de americanofilia. Quintino Bocayuva, por duas vezes ministro dos Negócios Estrangeiros, chegou a propor, com Washington, um "tratado" que, de alguma forma, abdicaria de uma parte da soberania.
O documento jamais chegou a existir. Retrospectivamente, provocava até certa urticária no barão do Rio Branco (José Maria da Silva Paranhos Jr., 1845-1912), que, na 3ª Conferência Panamericana (Rio, 1906), fez discurso em que diplomaticamente elogiava os parceiros do Brasil na Europa.
O fato é que a presença norte-americana se tornava cada vez mais maciça –com a exportação de industrializados e investimentos diretos (ferrovias, eletrificação, porto do Pará)– e a paralela criação de interesses e litígios bilaterais.
A partir dos anos 30, o lento colapso do liberalismo político na Europa deu aos Estados Unidos um papel ambivalente. Se de um lado eles se hipertrofiavam de maneira incômoda no plano econômico, de outro funcionavam como um antídoto à sedução que o nazifascismo exercia sobre parte das elites locais.
Oswaldo Aranha, chefe do Itamaraty com o Estado Novo, articula a política da "equidistância pragmática" que acaba por extrair vantagens econômicas dos norte-americanos, sem perder de vista que elas poderiam neutralizar o grupo pró-Eixo do governo.
Ou seja, o Itamaraty se torna um sutil instrumento de política interna. Com a bipolarização estratégica, a Alemanha perdeu espaço, sobretudo com o barulho feito por Aranha em torno da gafe cometida pelo embaixador do Reich, ao defender a livre propaganda nazista entre seus emigrantes.
Com a Guerra Fria, a diplomacia brasileira poderia ter gravitado na órbita norte-americana. Não foi, porém, o que a rigor ocorreu. Vargas desagradou os Estados Unidos com a Petrobrás.
Por sua vez, Juscelino Kubitschek lançou a idéia da Operação Panamericana como forma de chamar a atenção dos Estados Unidos para um continente secundarizado pelos investimentos norte-americanos, prioritariamente dirigidos à Europa (Plano Marshall) e à Ásia (Guerra da Coréia).
Jânio Quadros se elege e Afonso Arinos, no Itamaraty, esboça a política externa independente, que seu sucessor, San Tiago Dantas (1911-1964, ministro das Relações Exteriores e da Fazenda de João Goulart), também traduziria pela expressão "não-alinhamento automático".
No período 1961-1964, coincidindo com a Aliança para o Progresso de Kennedy, o Brasil bate as asas por conta própria. Resiste à expulsão de Cuba da OEA (Organização dos Estados Americanos) e reata relações com a União Soviética.
O regime militar viria com nova reviravolta. No governo Castelo Branco, o Itamaraty elabora a teoria da "interdependência" de interesses. Tropas brasileiras participam da ocupação da República Dominicana, supostamente ameaçada pela "subversão fidelista".
Mas essa política se esgotaria com o governo Costa e Silva. Já no governo Medici, o chanceler Mario Gibson Barboza se lança na diplomacia do "pragmatismo responsável".
Constrói pontes em direção à África e à América Central, em busca de novos mercados. Passa a defender a independência de Angola e Moçambique, que a Guerra Fria vê como presas fáceis dos interesses soviéticos. Não assina o Tratado de Não-Proliferação, que moldaria uma fronteira rígida entre produtores e consumidores de tecnologia termonuclear.
O afastamento prossegue com o governo Geisel, quando ocorre a ruptura do Tratado de Cooperação Militar com o Pentágono e é assinado, com a Alemanha, o acordo, hoje naufragado, para a importação de reatores movidos a urânio enriquecido.
Em nenhum momento houve propriamente crise nas relações Brasil-EUA. Mas, como instrumento diplomático de um "globe trader", o Itamaraty soube produzir políticas alternativas ao vetor que o ligou, historicamente, ao Departamento de Estado.
Com a constituição de blocos políticos e econômicos (União Européia, Apec, Nafta), Brasil e Argentina aparam suas arestas e articulam ao fim dos anos 80 a constituição do Mercosul.
Iniciou-se, assim, certa ênfase na diplomacia regional –interrompida durante o período em que o presidente Collor queria algo mais ambicioso, como uma presença simbólica nos clubes fechados do Primeiro Mundo.

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