São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 1994 |
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A volta do abuso "científico"
LILIA K. MORITZ SCHWARCZ
Em 1994, Murray e Herrnstein em "The Bell Curve" afirmam: "Apesar da atmosfera proibitiva que envolve esse tema, diferenças nas capacidades cognitivas dos grupos étnicos não causam nem surpresa, nem dúvida. As populações humanas diferem cultural e biologicamente." Sem dúvida o contexto político desses dois textos é variado. No caso de Nina Rodrigues, tratava-se de defender o papel da medicina legal na elaboração do Código Civil, já que esse cientista partia do suposto que a igualdade e o livre arbítrio eram utopias absurdas, frente à diferença das raças. "Os homens não nascem iguais" concluía o médico em 1888, desqualificando a igualdade jurídica, recém-obtida por meio da abolição. O objetivo de The Bell Curve é outro: provar que "a inteligência humana é diversa e pode ser mensurada por meio de testes mentais". Contrapondo-se à voga do "politicamente correto", os autores se apresentam como Dom Quixotes da ciência, em sua procura da verdade: "A igualdade de direitos foi implantada de forma profunda na América. Agora, mesmo com o princípio da igualdade, estranhas coisas vem acontecendo com segmentos dessa sociedade. Os termos dos discursos diferem. Enquanto Nina Rodrigues se apoia nas teorias social-darwinistas e na frenologia, comprovando a partir da medição de crânios que as raças são fenômenos finais, Murray e Herrnstein abandonam "raça" e utilizam um conceito que lhes parece mais apropriado: etnia. Tal opção não os impede, porém, de empregar no decorrer do livro, etnia e raça como termos sinônimos e exclusivamente vinculados à biologia. As conclusões também não coincidem. Se as interpretações deterministas do século 19 eram pessimistas, prevendo o final das nações compostas por raças miscigenadas e o fracasso dos países de população não-branca, os autores de The Bell Curve preferem consolar seus leitores dizendo que "apesar das diferenças reais, não há motivo para medo ou alarme". Porém, pior do que estranhar a "diferença", é qualificá-la. Esse é o grande delírio do pensamento evolucionista do século 19 –que submeteu a humanidade a uma só classificação, reservando aos brancos o topo da pirâmide social– ou do arianismo alemão, que buscou no branco puro a sua imagem e perfeição, e quem sabe também de The Bell Curve. Temo que, nesse caso, frente ao recente fenômeno de afirmação das etnicidades, mais uma vez forja-se o mesmo debate: a humanidade é mesmo marcada por desigualdades ontológicas fundamentais. Não é preciso ficar restrito a esses aspectos da discussão (que alguns poderiam chamar de política e não científica); os pressupostos do livro são em si equivocados. Em primeiro lugar, como bem disse Stephen Jay Gould, em A Falsa Medida, o exame de QI só mede o que ele quer medir e os índices limitados que pode apurar; mas esse aspecto já foi suficientemente discutido em outros artigos da Folha. É possível ir mais fundo. O próprio conceito "raça" é enganoso. Introduzido por Georges Cuvier em inícios do século 19, o termo inaugurava a idéia da existência de heranças físicas permanentes entre os vários grupos humanos. O conceito é, porém, rechaçado já nos anos 30, e sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, devido à visão preconceituosa que carregava consigo. Com efeito, a partir de então "raça" foi entendido como um conceito exclusivamente biológico –sem qualquer derivação social ou cultural–, uma noção relativa e apenas estatística, diante da rápida mutação das populações. Ou seja, se não existem raças puras (na medida em que não se pode falar em grupos totalmente isolados), é preciso concluir que os atributos mudam, assim como os índices de aferição. Sugiro, nesse sentido, que se testem as inteligências de Murray e de Herrnstein, assim como se fez com o crânio da famoso frenologista Paul Broca (cuja dimensão foi considerada diminuta). Portanto, o argumento central de The Bell Curve é frágil, assim como sua estrutura narrativa, que mais se assemelha a um manual de auto-ajuda. No entanto, não basta advogar uma ingênua homogeneidade cultural, já que de fato a humanidade é diversa e essa é sua grande riqueza. Por outro lado, nesse mundo tão marcado por ódios étnicos, é difícil defender as diferenças culturais a todo preço. Talvez seria melhor fazer coro a Lévi-Strauss, e concluir que o grande desafio continua sendo o de diferenciar sim, mas sem hierarquizar. Texto Anterior: Autor Vincenzo Consolo ganha prêmio literário Próximo Texto: Negro é tema de debate Índice |
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