São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 1994
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O ITAMARATY ABRE AS PORTAS

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR-EXECUTIVO DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O Itamaraty passa por um acelerado processo de "neoliberalização". Sob a influência de um cenário internacional que ainda busca a acomodação à realidade pós-Guerra Fria, a diplomacia brasileira vive uma fase de revisão de conceitos.
Durante os governos militares, o Itamaraty consolidou a fama de "terceiro-mundista". Na gestão Collor, esteve às voltas com um onírico discurso direcionado para o "Primeiro Mundo". Agora, tenta firmar-se como uma casa "universalista".
A eleição de Fernando Henrique Cardoso, apoiado por aliados políticos de perfil liberal, reforça a nova tendência da política externa do país.
Há uma semana, em Miami, na Cúpula das Américas, o presidente dos EUA, Bill Clinton, elogiou o esforço brasileiro para controlar a inflação. Ouviram-no representantes de todo o continente, incluindo Itamar Franco e o próprio Fernando Henrique.
O novo presidente, a exemplo de Collor, deseja aproximar o Brasil do mundo desenvolvido. Planeja, nesse contexto, reduzir áreas de atrito com os EUA. Tentará, de imediato, apressar a aprovação da lei de patentes no Congresso.
A diferença em relação ao passado recente é que Collor, chamado em tom elogiativo de "Indiana Jones" pelo antecessor de Clinton, George Bush, limitou sua ação à repetição de um discurso "liberal modernizador", importado principalmente do Reino Unido de Margareth Thatcher e dos EUA de Ronald Reagan.
Fernando Henrique acha que a ascensão internacional do Brasil depende não da retórica, não da vontade do presidente, mas da efetiva resolução das grandes pendências internas do país. Acha, por exemplo, que nada se fará sem que se consolide o processo de estabilização da economia.
A ótica de Terceiro Mundo, em voga nos governos militares, atravessou com dificuldades a fase Sarney. E hoje é vista pela nova geração do Itamaraty como uma tendência defunta.
Totem da tribo
O embaixador Italo Zappa, espécie de totem da tribo que defendeu a aproximação do Brasil com a África, é visto pela maioria dos colegas com respeitoso desprezo. Representa uma tendência em baixa. Também os valores ligados à defesa do Estado-empresário, entre eles o arraigado protecionismo econômico, estão sendo banidos do receituário do Itamaraty.
O atual ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, gosta de dizer que, no momento, a política externa brasileira não possui rótulos". Seu secretário-geral, embaixador Roberto Abdenur, repete-lhe as palavras.
Refletindo uma posição comum ao grosso dos diplomatas, os dois mostram-se avessos a definições simplificadoras. Consideram-nas pejorativas.
Mas, espremido, Abdenur deixa pingar o que pode vir a ser o novo rótulo da política externa brasileira: "Perseguimos o ideal da universalização", diz, sintetizando o sentimento médio do Itamaraty. "Nossa vocação é indiscutivelmente universal", concorda Amorim.
Alçados a postos de mando na gestão Itamar, depois que Fernando Henrique foi transferido do Ministério das Relações Exteriores para o da Fazenda, Amorim e Abdenur constituem a maior evidência de que algo mudou no Itamaraty.
Os dois gravitavam, como assessores, à volta do gabinete do ministro das Relações Exteriores na época de ouro do "terceiro-mundismo" –gestões Geisel, de 74 a 79, e Figueiredo, de 79 a 85.
Na primeira fase, sob Geisel, o chanceler foi Azeredo da Silveira, o Silveirinha, como o chamavam na intimidade.
No período seguinte, sob Figueiredo, o ministro foi Ramiro Saraiva Guerreiro. Não houve descontinuidade entre uma e outra gestão. Guerreiro havia sido secretário-geral de Silveirinha, visto então como um entusiasta do terceiro-mundismo.
Amorim foi assessor especial do ministro Silveirinha numa época em que Abdenur assessorava o secretário-geral Guerreiro. Depois, Abdenur continuou ao lado de Guerreiro quando este foi transformado em ministro.
Deslocado para a presidência da Embrafilme, Celso caiu em desgraça com os militares ao decidir financiar com dinheiro público o filme "Pra Frente Brasil", que falava de tortura e desaparecidos políticos, dois temas "subversivos" para a época.
Inimigos dos EUA
No início dos anos 80, o então embaixador americano no Brasil, Anthony Motley, apelidou Amorim, Abdenur e os integrantes de seu grupo de "barbudinhos". Vem daí parte da aversão de ambos a rótulos.
Auxiliado por Roberto Campos, ele próprio um membro da família dos diplomatas, Motley não perdia a oportunidade de classificá-los como esquerdistas inconsequentes. Enxergava-os como inimigos dos EUA.
Incluía-se também no time dos "barbudinhos" o atual embaixador do Brasil na ONU, Ronaldo Sardenberg, Ainda hoje todos trazem as bochechas recobertas de pêlos.
Além da barba, realçada por Motley e Campos como uma espécie de ícone revolucionário, uma forma de aproximá-los da imagem de Fidel Castro, os integrantes do grupo tinham outros pontos de contato.
Aproximava-os uma enorme identidade intelectual e o fato de pertencerem a uma mesma geração, que ingressou no Itamaraty no início da década de 60.
"A atuação desses moços no Itamaraty", relembra Roberto Campos, "veio apenas comprovar que a puberdade física, marcada pelo surgimento de pelos no rosto, nem sempre vem acompanhada da puberdade intelectual". Campos sente-se como que canonizado. Vê consolidados valores econômicos dos quais jamais se desgrudou.
O ex-ministro Delfim Netto, hoje deputado pelo PPR paulista, resume em poucas palavras o "triunfo" do colega na "guerra" particular que travou com o Itamaraty.
"Hoje, há uma enorme sintonia entre o que defende o Campos e o que pensa a nossa nova geração de diplomatas", afirma o deputado. "Quem se moveu foi o Itamaraty. O Campos continua onde sempre esteve".
Silveira's boys
Submetidos agora aos mesmos critérios de Motley e Campos, os "Silveira's boys" (garotos do Silveira), como são conhecidos os "barbudinhos" no jargão interno do Itamaraty, teriam de ser tachados de "neobarbudinhos".
Permanecem apegados à defesa de uma política externa independente, uma linha que se solidificou durante a presidência de João Goulart (chanceler San Thiago Dantas). Abominam, em consequência, a idéia do alinhamento incondicional aos Estados Unidos, praticado, por exemplo, pela vizinha Argentina.
Mas renderam-se a conceitos caros aos neoliberais. Acham, por exemplo, que é preciso reduzir o tamanho do Estado, eliminar barreiras protecionistas e atrair capital externo disposto a investir no Brasil. Consideram superado o modelo de substituição das importações.
Há uma quase unanimidade no Itamaraty em torno de tais valores, professados pelos principais grupos. Num movimento inédito na pasta das Relações Exteriores, há grande coincidência de opiniões entre o que pensam os "Silveira's boys", um grupo em ascensão, e o que defendem os integrantes do "grupo do PT".
PT, neste caso, não representa a sigla de Partido dos Trabalhadores, mas as iniciais de Paulo Tarso (Flecha de Lima). Embaixador do Brasil em Washington, ele é o personagem que, individualmente, detém maior poder de influência no Itamaraty.
Também o chamado "grupo dos economistas", que tem em Jorio Dauster, embaixador junto à Comunidade Econômica Européia, seu maior expoente no momento, está afinado com o novo ideário. Ex-negociador da dívida externa brasileira, Dauster é um diplomata admirado por Fernando Henrique.
Há uma tendência de durabilidade dos novos valores que impregnam a política externa do país. O movimento chegou ao Instituto Rio Branco, onde são formados os novos diplomatas.
"O Rio Branco é uma espécie de janela do Itamaraty, aberta para a sociedade", diz o diretor do instituto, embaixador Sérgio Bath. "O pessoal jovem traz idéias novas".
Lençóis argentinos
O próprio Bath, 63, é um sobrevivente da velha geração. "Quando estudante, fui às ruas na campanha do 'petróleo é nosso"', relembra. "Imaginava-se então que o Estado poderia produzir desenvolvimento e justiça social. Isso tudo mudou. Em certa medida, somos integrantes de uma geração decepcionada."
Há um mês e meio, o diretor do Rio Branco foi a um shopping de Brasília com a mulher. Precisava comprar lençóis. Recorreu a uma grande loja de departamentos. Surpreendeu-se ao encontrar na prateleira lençóis argentinos, a preços mais convidativos que os nacionais.
Os lençóis comprados por Bath foram trazidos até Brasília pelos novos ventos. A política de redução de tarifas de importação é outra tendência consagrada no novo Itamaraty.
Nem todos os diplomatas aceitam pacificamente a rotulação de neoliberais. Arredios, preferem atribuir a mudança de discurso a uma linha de pragmatismo comercial.
O ex-barbudinho Roberto Abdenur, por exemplo, diz que não mudou a política externa do país. O que se modificou, na sua opinião, foram os cenários interno e externo. Pelo seu raciocínio, a expressão "terceiro-mundismo" é uma "distorção". Ele diz que o Brasil foi levado a essa posição em função de problemas como as crises da dívida e do petróleo. A agenda de então, diz ele, separava os interesses das nações desenvolvidas e em desenvolvimento.
"Hoje seria absurdo que o Brasil mantivesse atitude hostil ao capital estrangeiro, num instante em que tantos novos mercados se abrem", diz Abdenur. "Quem duvida deve visitar a China".

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