São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 1994
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FHC quer fim das 'picuinhas' com EUA

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA; CLÓVIS ROSSI
ENVIADOS ESPECIAIS A MIAMI

O presidente eleito Fernando Henrique Cardoso sepulta a era dos conflitos por "picuinhas" com os Estados Unidos e quer abrir um novo momento, que batiza de "conflitos modernos", semelhantes aos que os grandes do mundo industrializado, como Japão e França, mantêm com a superpotência do planeta.
As teses de FHC sobre a política externa brasileira foram expostas à Folha na suíte 1434 do hotel Fontainebleau Hilton de Miami, na qual se hospedou durante os três dias da Cúpula das Américas, que reuniu 34 dos 35 países do continente (Cuba não foi convidada).
A conversa foi na tarde do domingo, 11, em sala com abajures decorados com pinturas de tucanos em fundo verde. "Espero que não tenha sido intencional", brincou o presidente eleito.

Folha - A discussão sobre modernização no Brasil, que virou um pouco a expressão da moda, tem tratado muito mais da questão interna. A política externa brasileira precisa de algum "aggiornamento" ou ela já é a política correta para o país?
Fernando Henrique Cardoso - A política externa não é uma coisa que se mude de repente. Ela tem que ter uma certa constância e isso tem sido muito valorizado no Itamaraty. Mas o mundo mudou muito, é claro, e tem que haver sempre um "aggiornamento" de tudo. Por exemplo, agora, aqui em Miami. A declaração de hoje, 11 de dezembro, tem implicações muito grandes. Nós estamos nos comprometendo com uma área de livre comércio que tem que estar pronta até 2005. Você imagina o que significa isso, se levado ao pé da letra? Acho que um dos problemas que existem na política externa brasileira, que eu já notava quando estava no Itamaraty, é a falta de ligação dela com as forças nacionais, as empresas, os sindicatos.
Quando eu estava no Itamaraty, criei um conselho empresarial e fiz uma primeira reunião com os líderes sindicais, porque o Mercosul vai ter consequências no mundo do trabalho. Esse é um dos aspectos que têm que ser revistos. Tenho até que pensar melhor e ver se não será preciso criar uma área de comércio exterior no Ministério da Indústria e Comércio. O acordo do Gatt e agora o de Miami, mais a integração aduaneira com Argentina, Uruguai e Paraguai, são fatos muito fortes e não se tem levado em conta as consequências deles. Nesse sentido, não tenha dúvidas de que sim, é preciso mudar.
Folha - O impacto sobre o mundo do trabalho deste acordo de Miami, se ele de fato caminhar na velocidade programada, será infinitamente maior do que o impacto do Mercosul. Como a sociedade se adaptaria? Houve uma discussão nas negociações preliminares. Os EUA queriam vincular direitos trabalhistas a comércio, o que Itamaraty vetou porque alega que é neoprotecionismo. É assim mesmo que o sr. encara essa questão?
FHC- O Itamaraty sempre tem o cuidado de evitar que haja condicionamentos externos à política interna. Agora, eu acho também que nós temos que ser mais abertos para o mundo. Veja que o Brasil levou anos resistindo à questão ecológica. Depois, absorveu-a. Levou anos resistindo à questão dos armamentos atômicos, ao tratado de não-proliferação. Arranjou caminhos laterais para fazer isso: o tratado quadripartite com a Argentina, fazer emendas para assinar o Tratado de Tlatellolco.
Nós não podemos repetir sempre essa mesma história de ter uma visão de Estado quase imperial ao se relacionar com outros Estados. Você veja hoje a questão das ONGs (Organizações Não-Governamentais). É uma questão delicadíssima. Existe uma forte demanda das ONGs no Banco Mundial, no Banco Interamericano de Desenvolvimento, para que elas sejam informadas do que está acontecendo. O Brasil é contra sistematicamente, porque o Estado brasileiro não quer ver diminuído o seu poder de decisão.
Eu acho que não se trata de diminuir esse poder, mas de se repensar o Estado em função de uma sociedade civil que conseguiu se organizar mais. Eu ouvi um neologismo naquela reunião que nós fizemos em Brasília, criado pelo Castells (Manuel Castells, sociólogo espanhol): ele chamou as ONGs de Organizações Neogovernamentais. É um bom neologismo. Porque é o que elas são. Elas se pensavam outra coisa mas, agora, é isso o que elas são. Este é um fato novo, que tem de ser incorporado à nossa visão do mundo. O Estado hoje não é um organismo fechado, ele está penetrado por setores da sociedade civil.
Por mais que isso seja difícil de ser assimilado pela burocracia e pelos que têm uma visão autoritária do Estado, é uma realidade. Estou pensando na sua pergunta sobre o mundo do trabalho. A primeira reação é sempre ruim. Mas temos que ver que não é possível manter uma relação com o trabalho que não seja contemporânea. É claro que aí tem a seguinte questão: o custo do trabalho no Brasil é uma das vantagens comparativas para o país. Mas é uma vantagem comparativa obtida às expensas da população.
É preciso se partir para um mundo no qual o custo da mão-de-obra não seja o fator definidor da competição. Tem de ser muito mais a tecnologia, a organização. A capacidade de competir não pode estar baseada na exploração de recursos naturais e de mão-de-obra. Nesse sentido, é preciso haver uma modernização.
Folha - Se já é complicado para a sociedade civil participar de algumas questões mais técnicas, como por exemplo de política econômica, na política externa, parece mais difícil. Como é que o sr. visualiza esse tipo de participação, a abertura do Itamaraty para a sociedade? Inclusive nos meios de comunicação, porque a imprensa brasileira cobre muito mal as relações externas do Brasil.
FHC - Praticamente não cobre. Você veja, por exemplo, o grande esforço feito aqui pelo embaixador Ronaldo Sardenberg na ONU: a repercussão lá no Brasil é nula. Parece não ser uma questão nacional saber se o Brasil tem tal ou qual posição na ONU. Na campanha eleitoral, ninguém levantou a questão externa. A não ser no Sul, o Mercosul. E no Norte, porque eles acham que o Mercosul requer um Merconorte e não percebem que na verdade não é isso.
Mas existem três setores que têm que andar mais depressa nisso. Um é tradicional, as Forças Armadas, que sempre tiveram contato. Mas os outros dois, não, que são empresários e a academia. Mesmo que você imagine que o mundo do trabalho seja mais refratário à discussão de assuntos de política externa, embora também ele se tenha internacionalizado, pelo menos a academia e o setor produtivo têm que estar acompanhando isso.
Folha - Mas a academia até que está melhorando. Por exemplo, o trabalho do Centro de Estudos Internacionais da USP.
FHC - Está melhorando. Mas é pouco ainda.
Folha - E o Congresso? O número de senadores e deputados que têm condições...
FHC - E que têm motivação...
Folha - e que têm motivação para esse tipo de assunto é muito pequeno.
FHC - São poucos sim. Eu acho que isso é importante, sim. Eu até falei com o Montoro (Franco Montoro, deputado federal eleito pelo PSDB-SP). Ele me disse que talvez seja o futuro presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara. Eu respondi: "Tomara que seja mesmo". Porque o Montoro dinamiza, agita. Eu tentei algumas vezes no Senado estimular essa discussão mas nunca houve muita sensibilidade. Embora o Senado seja mais próximo do Itamaraty do que a Câmara, ele não é tão próximo na discussão da política do Itamaraty.
Você veja agora as dificuldades que nós temos tido para aprovar a lei de patentes. Você pode ser contra ou a favor, mas tem que entender que esta é uma questão importante. Eu fui à Hungria e o nosso embaixador lá me disse assim: "Pelo amor de Deus, aprovem o tratado cultural do Brasil com a Hungria porque isso me facilita muito, eu obtenho aqui na Hungria uma porção de vantagens, salas de concerto para artistas brasileiros".

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