São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 1994
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Aveia em vez de chicote

A compreensão de que a inflação é o pior imposto leva o PSDB a priorizar a estabilidade dos preços
JARBAS PASSARINHO
Mestre Rui Barbosa já advertia que ler é comum; raro é o refletir. Depois de ler e refletir sobre o discurso do eminente senador Fernando Henrique Cardoso, presidente eleito de nossa República, chego a algumas conclusões que me parecem insuscetíveis de reparo.
A primeira, de natureza global, é que, permanecesse eu no Senado Federal, seria muito difícil fazer oposição, pois que tudo, ou quase tudo, o que foi por ele proferido, numa antecipação ao seu discurso de posse, tem sido objetivo a perseguir por todos os que professamos o credo social-liberalista. Não há como confundir-nos com adeptos do neoliberalismo, ou seja, como ensina Hayek: "As duas funções do Estado são prover uma estrutura para o mercado e prover serviços que o mercado não pode fornecer". Algo muito próximo do "laissez faire".
Temos por escopo preservar as conquistas magníficas do liberalismo antigo, que são as de natureza filosófica, fundamentalmente a liberdade. Mas desejamos um Estado regido por uma economia social de mercado, e não apenas uma economia de mercado, do mesmo modo que nos opusemos, com todos os riscos anteriores à queda do muro de Berlim, à economia centralizada.
A segunda conclusão é muito animadora. O nosso futuro presidente, se em verdade não terá pedido "que esquecessem o que escreveu antes", já não se filia à sua definição de há alguns anos, segundo a qual "todo sociólogo é marxista". Pois não teria cabimento a um marxista proclamar "a abertura da economia; a condenação do Estado produtor direto, que deve ser substituído pelo Estado regulador, incentivando os investimentos privados na atividade produtiva; a eliminação de restrições anacrônicas ao investimento estrangeiro; o papel decisivo da parceria com a iniciativa privada; e a privatização de empresas nos setores de energia, transportes, telecomunicações e mineração". Seriam blasfêmias à luz dos ensinamentos do velho Marx...
A compreensão de que a inflação é, como se afirma há tanto tempo, o pior imposto, pois que penaliza muito mais os que menos têm, leva o programa governamental tucano a fazer da luta pela estabilidade dos preços uma prioridade absoluta, não mais, contudo, através do ilusório processo de controle dos preços que desde Hamurabi se prova ineficaz, mas que sempre tenta governantes, que preferem o comodismo de uma falácia ao esforço de incentivar a produção e fazer valer a cediça lei da oferta e da procura.
Há que reconhecer, contudo, que a razão está com quem, como o futuro presidente diz, reconhece que há que distinguir um desenvolvimento, que leva em conta o bem-estar geral, daquele que traz em si o germe da perversidade, na injustiça da distribuição iníqua da renda.
É aí que se pode identificar, como ainda há poucos dias no Senado o fez Pérsio Arida, que a evolução do ideário marxista para (no caso dele) o credo social-democrata não elide a preocupação com as causas sociais. A receita é que muda. Ou como dizemos nós: o diagnóstico de Marx, do capitalismo selvagem, é irreprochável, mas a terapia que propôs foi de matar o doente da cura.
Não se descarta a hipótese de não ser muito longa a lua-de-mel do governo a iniciar-se dia 1º de janeiro, com o Congresso. Há eleições marcadas para as prefeituras dentro de dois anos. Impossível deixar de contar com os populistas, a defenderem medidas de amplo efeito eleitoral, mas desastrosas para a estabilidade econômica.
O próprio destino do Plano Real, que no discurso no Senado Fernando Henrique sustenta não ser recessivo, depende vitalmente de mudanças estruturais, algumas tentadas, sem êxito, no governo Collor –como o ajuste fiscal, o redesenho do papel do Estado, aliviando-o de monopólios ineficientes, a revisão das aposentadorias só por tempo de serviço e a propriedade industrial, entre outras.
A grande batalha, a julgar pelo que aconteceu no fiasco da revisão constitucional, será travada precisamente no Congresso, no enfrentamento da resistência corporativa, cuja capacidade de mobilização e de intimidação dos parlamentares já foi amplamente provada. É aí que o discurso social-democrata pode ser torpedeado.
Talvez Fernando Henrique possa habilmente contornar esse grande obstáculo, auxiliado pela eficiência de Marco Maciel como negociador, mas não fará nada mal que ambos meditem sobre um velho ditado russo: "Não conduza o seu cavalo com o chicote, mas usando a mochila de aveia"...

JARBAS PASSARINHO, 74, coronel da reserva, é senador pelo PPR do Pará. Foi presidente da CPI do Orçamento (1993-94), ministro da Justiça (governo Collor), da Previdência Social (governo Figueiredo), da Educação (governo Médici) e do Trabalho (governo Costa e Silva).

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