São Paulo, segunda-feira, 19 de dezembro de 1994
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Collor e o país da hipocrisia

LUÍS NASSIF
COLLOR E O PAÍS DA HIPOCRISIA

No dia da absolvição do ex-presidente Fernando Collor, tal qual um deus vingador emergindo das brumas da nacionalidade, Betinho despejou dardos de fogo contra a decisão do Supremo.
Dias antes, a repórter Edna Dantas, da revista "Veja", transcrevera escuta telefônica entre dois próceres do itamarismo: o presidente da Telerj, José de Castro, e o Ministro das Comunicações, Djalma Moraes, onde claramente combinavam a distribuição de recursos de sua caixinha política. Como não eram tesoureiros oficiais de nenhuma campanha, a única explicação era a de que a caixinha fora montada com fornecedores do Estado, tipos que costumam contribuir em duas circunstâncias: para retribuir favores ou para prevenir represálias.
Mas o grande Betinho calou-se. Até o final do ano, ainda é possível que apareça uma ou duas vezes na mídia, anunciando o governo Itamar como o mais honesto da história. Porque faz parte do jogo.
Sua belíssima ação social permite-lhe participar em posição de destaque do grande clube dos brancos da política brasileira. O clube, que já foi mais fechado, hoje é "democrático". Povo não entra, mas seus "porta-vozes" têm acesso garantido, sejam eles coronéis nordestinos, representantes do populismo cinquentista de Brizola, do oitocentista do PT, lobistas de bancos, da FIESP, da zona franca ou dos pobres.
No salão, os grupos compartilham do mesmo teto, dos mesmos candelabros e do mesmo caviar. Vez por outra permitem-se contradanças, mas em público não se falam. A indignação sempre é seletiva –raios de fogo contra os adversários, raios de luar para os aliados– mas apenas da sacada, de onde os grupos acenam para a "massa", a uma distância prudente, nem de tão longe que signifique alheamento, nem de tão perto que permita intimidades.
Poder e beleza
Essa sede de justiça canalizada exclusivamente contra Collor explica-se à luz da histórica hipocrisia –a pior das heranças gerada por um Estado centralizador e propício à ação de grupos políticos organizados.
Collor é cachorro-morto, portanto propício a temperamentos que cultivam a síndrome do linchamento sem riscos. O esquema "collorido" sempre foi um horror de prepotência e de falta de limites. Mas enquanto poder, as feijoadas de Cleto Falcão eram o "must" da corte; os dentes separados de Zélia, símbolo de feminilidade; as grosserias de Cláudio Humberto, prova de lealdade ao chefe; e PC, um sensível colecionador de cantatas de Bach.
Além disso, não sendo sócio do clube Collor permite a todos exercitarem a unanimidade pouco complexa dos que são a favor do bem, da verdade e da imortalidade da alma. Sem Collor, contra quem Betinho iria despejar seus dardos? Contra seu amigo Itamar? Contra quem os malufistas canalizariam sua indignação? Contra as empreiteiras que financiaram Collor, mas também Maluf e o PT?
Segundo, porque Collor ameaçou transformar o clube em "privée".
Erros iguais
Alguns meses atrás, por exemplo, a prefeitura de São José dos Campos descobriu a existência de um grupo que, ao que tudo indica, falsificava guias de impostos municipais para receber comissões da prefeitura, a título de consultoria contra sonegadores. Integravam-no pessoas próximas à cúpula petista. Seu desmantelamento coincidiu com o refluxo das "caravanas da cidadania". Há meses, o paulistano paga por um lixo mais caro, num processo que beneficia grandes empreiteiras que contribuíram para o esquema "Pau Brasil" –a caixinha política do prefeito de São Paulo.
Em plena campanha, revelou-se o esquema de caixinha política do considerado mais íntegro dos tucanos –senador Mário Covas. E o que não dizer dos Ibsens e dos Genebaldos e do governo Sarney?
Na relação dos vícios públicos, não há nenhuma diferença substantiva entre todos eles e Collor. A escala era maior porque Collor tinha a Presidência da República. E a ação menos discreta, porque o presidente deixou-se cercar por um bando de amadores deslumbrados.
Por isso, a cada dia que passa, mais acredito em dois fatos. Primeiro: em relação à exploração dos favores do Estado, são todos farinha do mesmo saco. Segundo: o que derrubou Collor foram suas qualidades. Os vícios foram apenas o álibi para impedir mudanças, não para implantar a virtude pública.

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