São Paulo, quarta-feira, 21 de dezembro de 1994
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Unidade na diferença

VICENTE PAULO DA SILVA

Durante muito tempo se ouviu e ainda hoje se ouve falar no movimento sindical que o debate sobre certas questões divide os trabalhadores. Segundo esse raciocínio, o enfrentamento de temáticas "diferentes" acabaria por fracionar a unidade e funcionaria como obstáculo à organização dos trabalhadores.
Durante muito tempo, no movimento sindical, aprendemos sobre a luta e organização dos trabalhadores no Brasil a partir da chegada dos europeus, no início do século (que foi muito positiva). Não se contava das lutas e organização de outros trabalhadores, inclusive os negros, épocas e épocas anteriores.
Mas a realidade sempre fala mais alto. Foi o que presenciamos em Salvador dentre os últimos dias 19 e 22, no decorrer dos trabalhos da Conferência Sindical Interamericana pela Igualdade Racial.
Tal conferência já nasceu com grande salto de qualidade, dado que foi organizada por três centrais sindicais brasileiras (Central Única dos Trabalhadores, Força Sindical e Conferência Geral dos Trabalhadores) em conjunto com a central norte-americana AFL-CIO, tendo como convidada especial a Cosatu, africana.
Durante quatro dias nós, mais de cem delegados dessas centrais, negros e brancos anti-racistas, companheiros americanos e africanos nos debruçamos sobre a dimensão da temática racial no cenário econômico, social e político das Américas.
Aspectos como os dados das desigualdades raciais, a questão da legislação e das políticas públicas antidiscriminatórias, a omissão do Estado, o papel do movimento sindical na superação das desigualdades raciais, o cumprimento da Convenção 111 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) foram debatidos e suscitaram reflexões que muito provavelmente a maioria dos sindicalistas brasileiros não teve a oportunidade de fazer.
E o intrigante é que tais reflexões desenham um quadro absolutamente essencial para que possamos compreender a realidade brasileira e propor soluções duradouras para a consolidação da democracia e a universalização da cidadania.
Às vésperas do tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares, o movimento sindical brasileiro não poderia ter dado demonstração mais contundente de que é possível um esforço conjunto pela criação de condições que possibilitem o pleno desenvolvimento das potencialidades humanas, sem privilégios ou discriminações de quaisquer natureza.
Trata-se, no limite, de um esforço pela vida. Um esforço que ao invés de excluir se propõe a incluir todas aquelas forças políticas comprometidas com a luta pela melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores, aqui incluída a igualdade de direitos, como condição básica para a ampliação dos espaços democráticos.
Aos diagnósticos somaram-se propostas concretas, que assumidas efetivamente pelo movimento sindical representarão uma verdadeira ruptura na omissão histórica dos sindicatos frente às desigualdades raciais.
Mais que isso, representarão a qualificação do movimento sindical para o tratamento dos problemas decorrentes da discriminação racial que atinge mais diretamente pelo menos metade da força de trabalho do país, de modo a ampliar sua legitimidade e enraizar a organização sindical nos locais de trabalho.
Assim, a criação de uma rede interamericana de solidariedade, a luta pela compatibilização da reestruturação produtiva com a qualificação da mão-de-obra, o empenho da implementação das normas internacionais antidiscriminatórias, a realização de uma segunda conferência nos Estados Unidos, dentre outras metas, espelharam a esperança e a luta de dirigentes conscientes da necessidades de incorporarmos a luta contra o racismo no cotidiano da vida sindical.
A questão racial aumenta o salutar desafio colocado para o sindicalismo: é preciso que os sindicatos também assumam seu papel de elementos de transformação social.
Contrariando, felizmente, o equívoco de que certos debates dividem os trabalhadores, a temática racial unificou diferentes tendências do sindicalismo brasileiro numa agenda comum. É certo que haverá outros temas a nos unir, que obviamente não implicam o abandono das divergências, mas atestam a viabilidade de explorarmos os pontos de convergência.
Essa luta contra a discriminação racial e contra qualquer outro tipo de discriminação deve ser assumido por nós sindicalistas e toda a sociedade. Esperamos dos novos governos ações concretas.
O desafio está lançado, lançado desde 1595 quando da constituição da primeira república livre, multirracial e democrática das Américas: o Quilombo de Palmares.
Entre tantos desafios (lutas, cursos, história, debates etc.) que o movimento sindical assumirá, existe a proposta de ocupação da Serra da Barriga, em 20/11/95 (300 anos da Morte de Zumbi). Atenção entidades organizadas da sociedade civil e pessoas de bem, vamos juntos, com garra, esperança e alegria, cumprir mais este?

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