São Paulo, quarta-feira, 21 de dezembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Não confio na polícia

HELIO SANTOS

Em tese, a polícia tem como uma de suas metas básicas proteger os cidadãos e os seus direitos. A dificuldade inicial que se tem em relação à instituição policial é de identificação. Afinal, quando alguém fala em polícia, não se sabe precisamente a qual delas está se referindo.
Trata-se de equívoco separar a polícia que faz o combate ostensivo ao crime, no Brasil denominada militar, da encarregada da parte judiciária, aqui apelidada de civil. Eu acreditava, tempos atrás, que uma polícia una, desmilitarizada e profissional, pudesse atender melhor as necessidades da população atemorizada pela falta de segurança que ocorre no país.
Esta é uma posição antiga do movimento negro brasileiro e que defendi junto com alguns juristas como Saulo Ramos e outros, quando participamos da Comissão Arinos, que elaborou em 1985/86 polêmico anteprojeto constitucional.
Hoje, não estou convencido da importância dessa unificação. É que, como teoriza a matemática, a soma de duas entidades negativas ocasiona uma terceira piorada.
De lá para cá, no tocante às polícias, a situação atingiu limites intoleráveis. Eu diria mais: hoje em dia as polícias trabalham na contramão da segurança pública, ou seja: atuam, muitas vezes, em parceria com os bandidos e noutras vezes fazendo concorrência –desleal no caso– a estes.
O que, efetivamente, as polícias não têm feito é enfrentar de maneira eficaz o chamado crime organizado: contrabandistas, ladrões de bancos, narcotraficantes, sequestradores, gangues de roubos de automóveis e cargas.
Por outro lado, demonstram extrema "eficácia" com meninos de rua, favelados, prostitutas, desempregados pobres, grevistas, adolescentes e negros em geral. Enfim: são durões com a subcidadania inocente.
Nos últimos tempos, a PM paulista (famosa mundialmente pelo recorde do Carandiru) descobriu novo nicho de demonstração de "competência": a prisão de "rappers". Temos aí –e não é necessário ser jurista para assim entender– um flagrante desrespeito à Constituição que assegura a liberdade de opinião.
Os anos 60 e 70 foram marcados pela chamada "música de protesto", em que as canções de cunho social representavam uma vertente importante da MPB. Os festivais atraíam um público politizado, jovem e branco. Naqueles tempos, as escaramuças se justificavam, pois vivíamos sob a égide do AI-5. Nos dias atuais é inadmissível que a PM do maior Estado afronte reiteradamente a Constituição impunemente.
Causa estranheza, por outro lado, a frieza com que determinados setores ditos progressistas reagem a esse abuso. Os "rappers" são os poetas sociais da periferia e não têm o carisma dos jovens universitários, bem nascidos, dos saudosos festivais de MPB. A crueza dos seus versos, entretanto, refletem o que a população pobre e jovem pensa. O verso contido em letra do grupo Racionais MC's diz: "Não confio na polícia". Perguntamos: quem confia?
Os ricos têm sua segurança pessoal. Os condomínios, empresas, escolas e até igrejas, contratam seus próprios seguranças. A população pobre nutre pela polícia, e em especial pelas PMs, desconfiança, medo e ressentimento. Das duas maiores PMs qual delas consegue ser pior: a do Rio ou de São Paulo?
Atos de insurreição por parte da tropa é comum. Temos inúmeros exemplos. O chamado Alto Comando das PMs, em grande parte, ainda é composto por homens que serviram ao esquema de repressão montado durante a ditadura e que não se acostumam com os ventos novos da democracia... Eis aí um ingrediente que muito complica o já tumultuado horizonte da (in)segurança pública.
Creio que as polícias tornaram-se um imbróglio tão sério para a população brasileira que só uma atitude mais firme da sociedade civil poderá permitir uma mudança do tamanho da requerida e que não se restringe a uma mera unificação.
A população, hoje, se encontra ensanduichada: de um lado temos inúmeros bandidos especializados, além de punguistas de todo o tipo; e de outro, temos nada mais nada menos que a própria polícia. Há exceções dentro desse quadro de descalabro geral. Entretanto, os fatos dizem por si, a questão, hoje, é institucional. Os casos não são isolados. São sistemáticos.
O certo é que a polícia não piorou –o mais certo seria dizer degradou– assim de repente. Pelo contrário, sua deterioração foi gradual e proporcional à sensação de impunidade que a corporação percebia em relação às autoridades que deveriam balizar suas tarefas e atitudes.
Só a certeza da impunidade e do beneplácito das autoridades (entenda-se: Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário) nos remete a imoralidades do porte do assassínio das crianças da Candelária e dos trabalhadores favelados de Vigário Geral, em que, tudo indica, houve participação da PM.
Trata-se de rematada tolice supor que vivemos em uma democracia pelo simples fato de elegermos os governantes em todos os níveis. Uma democracia substantiva requer, dentre outras coisas, um Judiciário eficaz e moderno, e sem um aparelhamento policial que funcione a contento aquele primado se vê inalcançável.
O novo Congresso, a se instalar em fevereiro próximo, mediante uma CPI, poderia evidenciar em detalhes aquilo que o cidadão comum já conhece superficialmente: o descalabro das polícias.
Estaríamos a meio caminho de uma mudança que sinalizaria o início do fim de uma era que nos coloca na rabeira do mundo civilizado. Conhecendo a anacrônica, absurda e, é bom também não se esquecer, perigosa polícia brasileira é que podemos entender a profundeza dos difusos versos do poeta Chico Buarque de Hollanda: "Chamem um ladrão, chamem um ladrão!"

A Folha realiza hoje, às 19h30, no auditório do jornal, o debate "A Imagem do Negro". Os convites podem ser retirados a partir das 9h na portaria da Folha.

Texto Anterior: Unidade na diferença
Próximo Texto: Autocrítica petista; Clube dos indignados; Todo poder aos professores; Novos liberais; Collor absolvido; Democracia social urgente!; Rio, beleza e turismo; Melhores votos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.