São Paulo, domingo, 25 de dezembro de 1994
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Riscos da valorização cambial

LUIZ GONZAGA DE MELLO BELLUZZO; PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

LUIZ GONZAGA DE MELLO BELLUZZO e PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
O México pode servir de alerta a quem substima os riscos deste modelo de estabilização
A possibilidade de implantar um programa de estabilização como o Plano Real foi ensejada pela profunda alteração das condições externas da economia brasileira. Desde 1990-1991, o ressurgimento dos fluxos de financiamento externo, a queda dos juros internacionais e as políticas internas de juros altos e câmbio indexado permitiram uma rápida e vultosa acumulação de reservas. Descontada a inflação norte-americana, o nível das reservas cambiais brasileiras era, em junho de 1994, mais de quatro vezes superior ao alcançado em fevereiro de 1986, ocasião de lançamento do Plano Cruzado.
Essa mudança fundamental constitui uma das principais, senão a principal diferença entre o Plano Real e seus antecessores, porque propiciou ao governo um grau de liberdade inexistente nas tentativas anteriores de estabilização.
Na execução do Plano Real, esse trunfo vem sendo usado intensamente, por meio da valorização da taxa de câmbio, combinada com a aceleração da abertura às importações e, até mesmo, com a taxação das exportações de produtos que apresentam cotações em alta no mercado internacional.
A problemática sobrevalorização cambial não parece ser um "erro de pilotagem", nem um subproduto indesejado da política de estabilização. Trata-se, aparentemente, de uma peça central do programa do governo, que escolheu a valorização externa do real como um dos instrumentos principais para alcançar a desinflação pela via rápida.
As manifestações da equipe econômica indicam que a ação do governo tem sido orientada pela percepção de que, numa economia como a brasileira, afetada cronicamente pela alta inflação e contaminada pelo hábito da indexação, a valorização acentuada da taxa de câmbio representa um meio de submeter os formadores de preços a uma forte pressão competitiva que os impeça, numa situação de crescimento da demanda interna, de ampliar margens e restabelecer mecanismos de correção automática de salários.
O recurso à valorização cambial tornou-se ainda mais decisivo diante da fragilidade do ajuste fiscal empreendido pelo governo. Houve, na verdade, uma inversão na ordem dos procedimentos de estabilização proposta inicialmente pelos autores do plano, que condicionavam a reforma monetária e cambial ao reequilíbrio, prévio e consistente ao longo do tempo, das finanças públicas.
A fragilidade fiscal impôs, de fato, uma sobreutilização do câmbio e dos juros como instrumentos de combate à inflação. E, por isso mesmo, o programa de estabilização abriga riscos consideráveis de inconsistência dinâmica.
A valorização cambial real acumulada, de julho a novembro, alcançou a faixa de 30% quando se toma como deflator o INPC ou cerca de 25% quando se toma o Índice de Preços no Atacado (disponibilidade interna). Não há registro, no caso brasileiro, de uma valorização real tão forte em tempo tão curto.
O problema tende a se agravar, na medida que a convergência entre a inflação doméstica e a inflação nos Estados Unidos será inevitavelmente lenta. Nos últimos meses, a inflação mensal em reais é equivalente à inflação anual norte-americana. Ainda que se adote a suposição –válida– de que a inflação brasileira apresenta uma trajetória declinante, é altamente improvável que se consiga convergir para os níveis internacionais em 1995 ou mesmo em 1996.
Em consequência, o já grave problema da sobrevalorização cambial poderá aumentar nos próximos dois anos. Admitindo-se, por exemplo, estabilidade da taxa de câmbio nominal real/dólar até dezembro de 1995, uma inflação norte-americana de 3% ao ano e –hipótese talvez otimista– uma inflação anual de 30% no Brasil, a valorização real acumulada em relação ao dólar alcançaria mais de 40% em 18 meses!
A persistência da valorização cambial e a abertura comercial rápida têm efeitos positivos em termos de controle da inflação, pelo menos no curto prazo. Não é possível, porém, ignorar as sequelas do Balanço de Pagamentos. A erosão da posição no balanço de transações correntes decorrerá não apenas do câmbio e da abertura comercial, mas também do crescimento da demanda interna –deflagrada pelo próprio Plano Real– e da tendência de alta das taxas de juros internacionais. Isso significará a acumulação líquida de passivos externos, com efeitos cumulativos sobre o próprio déficit em conta corrente nos períodos subsequentes.
Observado de uma perspectiva de médio e longo prazos, o crescimento do passivo externo requer a criação de capacidade de pagamento compatível com o volume crescente de remessas de rendimentos, vale dizer, aumento da capacidade de produção dos setores voltados para a exportação ou para a substituição de importações.
O problema é que a política de valorização persistente do câmbio induz justamente o contrário, porquanto penaliza o investimento nos setores que produzem bens "transacionáveis". Uma outra consequência será, portanto, a baixa capacidade de atração de investimentos estrangeiros destinados à exportação ou à substituição de importações. O investimento direto de origem externa deverá se concentrar na área dos "não-transacionáveis", sobretudo nos serviços.
Essa dimensão pouco discutida do atual programa de estabilização é contraditória com as pretensões do governo de promover a integração internacional eficiente e competitiva da economia.
Finalmente, diante da combinação esperada entre câmbio e juros ocorrerá, como na Argentina e no México, uma intensa dolarização dos passivos das empresas, instituições financeiras e famílias, atraídas pela perspectiva de contrair dívidas expressas em uma moeda que se desvaloriza em termos reais e com juros baixos relativamente aos praticados nas operações expressas em moeda nacional.
Isso transforma importantes setores da sociedade em adversários da correção cambial e sujeita a economia ao risco de uma crise financeira, na hipótese de que venha a ser inevitável ajustar a taxa de câmbio de forma abrupta mais à frente.
Essas circunstâncias colocam o programa de estabilização brasileiro em dependência muito estreita da disponibilidade abundante de financiamento externo. Ora, os fluxos financeiros que abastecem nosso balanço de capitais são extremamente voláteis. Não convém perder de vista que muitas das experiências de estabilização dependentes da valorização do câmbio e da entrada de capitais de curto prazo, ainda que bem-sucedidas nos primeiros anos, terminaram em crises financeiras graves e no estrangulamento cambial.
O recente ataque especulativo contra a moeda mexicana, que forçou o governo a abandonar a âncora cambial, pode servir de alerta aos que subestimam os riscos deste modelo de estabilização.
O episódio mexicano deve inclusive acelerar a tendência de esgotamento do movimento de ajuste de porta-fólios que ocasionou o fluxo de capitais para os chamados mercados emergentes nos últimos anos.
Quanto maior for a duração do regime de câmbio valorizado, mais danosas serão as consequências para o país, no momento em que se tornar insustentável a posição externa. Em particular, uma valorização duradoura acaba levando à perda de posições conquistadas nos mercados do exterior e à desarticulação dos setores que competem com importações, suscitando enormes dificuldades para o posterior ajustamento da economia.

LUIZ GONZAGA DE MELLO BELLUZZO, 52, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e assessor especial de Assuntos Internacionais do Estado de São Paulo. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney).

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR., 39, economista, é professor e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (SP). Foi secretário especial de Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento e assessor para Assuntos da Dívida Externa do Ministério da Fazenda (governo Sarney).

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