São Paulo, domingo, 25 de dezembro de 1994
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Um artesanato misterioso

OTÁVIO DIAS
DO ENVIADO ESPECIAL A SALVADOR

Jorge Amado já publicou 22 romances –o primeiro deles, "O País do Carnaval", no longínquo ano de 1931. Escreveu também dois livros de memórias, duas histórias infantis, duas biografias –de Castro Alves e de Luis Carlos Prestes– e uma infinidade de outras coisas. Para o autor baiano, no entanto, o ato de escrever continua um mistério. A seguir, ele fala sobre seu processo de trabalho.(Otávio Dias)

A vida lá dentro
"O trabalho do romancista é artesanato. É a máquina de escrever, a caneta e o papel. O resto é tua cabeça, teu coração, tuas tripas, teus culhões.
Na Bahia, começo a escrever por volta das seis da manhã; em Paris, um pouco mais tarde, por volta das 7h30. É o horário em que estou mais capaz, fisicamente melhor. Depois do almoço, durmo; no resto do dia, leio.
Quando jovem, escrevia à noite. Escrevia pra burro, dez, 12 páginas por noite, e de manhã não revia nada. Pouco me importava se repetia uma palavra. Minha obra existe não pela escrita, que é inteiramente descuidada, mas pela vida que tem lá dentro.
Agora, minha filha Paloma está revendo minha obra. Há coisas ilegíveis, outras já não fazem nenhum sentido. Outro dia, ela me telefonou, revia 'Jubiabá', que é de 1935, estamos em 94. Em certo momento, um personagem dizia: 'Quem foi Naninha?'. Paloma não via sentido. 'Não tem sentido pra você', respondi. 'É uma expressão da época. Quer dizer 'quem te viu, quem te vê'.
Hoje, retrabalho muito o texto. É necessário bulir muito as cenas. A gente vai escrevendo e, de repente, precisa voltar e rever ganchos que deixou lá atrás.
O leitor está atento. Se o escritor coloca uma marca aqui, ele exige a explicação depois. Da mesma maneira, um personagem não pode aparecer do nada no meio de um romance. Tem que vir de antes."
Cavalo de personagens
"Quando tenho uma idéia, começo a amadurecê-la. Começo a ver personagens, ambientes, nunca sei a história no início de um novo livro. O enredo vai sendo composto pelos próprios personagens, à medida que vou escrevendo.
No início da criação de um livro, trabalho quatro ou cinco horas por dia. No final, fico tomado pelos personagens, escrevo cada vez mais tempo, dez, 12 horas, termino com os dedos podres, muito cansado física e moralmente. Mas me dá enorme prazer.
Agora, estou louco para trabalhar meu bispo na "Apostasia", já tenho algumas idéias. Em uma cena, por exemplo, no seminário, ele está andando de mãos dadas com um colega e diz: 'Um dia vou ser cardeal!'. O amigo retruca: 'Por que não papa?'. Ele responde: 'Porque não sou italiano'.
O embrião de Gabriela
"Alguns personagens amadurecem de um livro para outro. Gabriela aparece pela primeira vez no capítulo 'O mar', de 'Terras do Sem Fim', onde nem tinha nome ainda. Depois, em 'São Jorge dos Ilhéus', a personagem Rita é um embrião de Gabriela."
O parto de Gabriela
"Os nomes dos personagens também são um mistério. Quando comecei a escrever 'Gabriela', não tinha título. Um dia, Zélia foi ao hospital visitar uma amiga que havia dado à luz uma menina. Quando voltou, perguntei: 'Qual o nome da menina?'
Zélia, sem mais nem menos, respondeu: 'Gabriela'. Falei: 'Gabriela, que nome bonito, vou botar no meu personagem. Gabriela, cor de canela... Gabriela, cravo e canela... Gabriela, Cravo e Canela!' Só que a menina não se chamava Gabriela, mas Sílvia. Porque Zélia disse Gabriela, só Deus sabe."

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