São Paulo, domingo, 25 de dezembro de 1994
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JOÃO VARAPAU

JORGE AMADO

A expressão "filhinhos-de-papai" teve largo gasto, ampla circulação. Dela usaram e abusaram em reportagens e artigos publicados pelas gazetas, transmitidos nas ondas das rádios e das televisões. Assim eram designados, com revolta e ironia, os moços que empunhavam a bandeira e os princípios da revolução sexual e a levavam à prática, com constância e zelo, nas chamadas comunidades ou coletividades do amor. Nelas "se entregavam a orgias coletivas, a bacanais medonhas, em companhia de mocinhas de tenra idade".
"Sexo desregrado e promíscuo" para o Cardeal e seu rebanho de fiéis, unidos em santa cruzada, ao menos nas declarações públicas. Por detrás havia quem rezasse pela cartilha do Guru do Monte Ararat e se dedicasse ao "amor total, liberado das cadeias do feudalismo". Tampouco as moças liberadas eram todas de tenra idade, umas tantas passavam das 16 primaveras e entre elas insinuavam-se balzaquianas casadas e mães de filhos. Aproveitavam-se da ocasião e dos garanhões.
Filhinhos de papai, corja ignóbil, os jornais desancavam sem dó nem piedade. Herdeiros de famílias ricas, de personalidades influentes na economia e na política, acreditavam-se acima das leis e agiram em consequência. Eminente sexóloga, com doutorado em universidade norte-americana –já então começava a ganhar espaço em jornais e televisões a corporação dos sexólogos, hoje tão numerosa quanto egrégia–, deu de público as razões a conduzir os "filhinhos e filhinhas de papai" (abaixo o machismo!), "rapazes e moças bem nascidos, a repudiar o lar, os conceitos e valores de sua classe social, a moral vigente, para se entregarem a práticas condenadas pela sociedade". A erudita doutora punha tudo em pratos limpos, tintim por tintim. Nem assim a cadeia de televisão que a empregava deixou de condenar os elementos deletérios, não levou em conta a revolta contra os valores estabelecidos, a busca ansiosa de novos padrões sociais, os complexos fatais, o de Édipo e o de inferioridade.
Tranquilizado pela prudência do noticiário –a expressão "filhinho de papai", anônima, substituía os sobrenomes intocáveis–, Bóris pôde divertir-se com o detalhe do cartaz, referido em todas as reportagens, por curioso e pitoresco. O cartaz com o título completo do "Doce Lar - Doce lar da amável e alegre comunidade do sexo liberado e dos deleites da vida, faça o amor, não faça a guerra"–, recolhido entre os troféus da batalha na vitoriosa blitz da polícia.
Levado para a Polícia Central, o Doutor Delegado o exibiu aos repórteres e permitiu fosse fotografado. Colorido, ilustrado com desenho indecente, um casal no deleitável ato da fornicação, antes estivera pendurado durante dias na porta da rua da casa da Boca do Rio, uma afronta à vizinhança. Autor desconhecido, completou o Doutor Delegado de Costumes.
Bóris riu consigo mesmo, olhando a fotografia na primeira página de "A Hora da Bahia" –pequena tarja negra encobria a parte escandalosa do desenho. O autor, Bóris o conhecia muito bem e o admirava, não tanto pelos poemas declamados a torto e a direito, mas pelo jeito de ser de seu chapa João Varapau, fanfarrão ruidoso, metido a literato, sempre a contar vantagens. Apelidado João Varapau por ser alto e magro, antes que a revolução dos hippies houvesse modificado os costumes e a língua falada pelos jovens, quando passou a assinar-se Little John pois João Bezerra Curi amava a contradição, os Beatles e o rock-and-roll. Sem falar em mulher, por mulher era tarado.
Membro dirigente e atuante do turbulento grupo dos Poetas da Praça, Little John costumava declamar, ele próprio, seus poemas na Praça Castro Alves, no Largo da Piedade, no Farol da Barra, na Mariquita, locais de concentração. Oferta gratuita de poesia ao povo, dádiva dos vates emergentes, sem espaço em jornais e revistas, recusados pelos editores, boicotados pelas igrejinhas literárias, vítimas da sociedade inculta, opressiva, conservadora.
Em mais de uma ocasião, Bóris acompanhara Varapau aos polêmicos recitais de declamação. Polêmicos porque se os passantes davam pouca atenção aos bardos que se esguelavam, nem paravam para saber de que se tratava, os habitantes de casas e apartamentos próximos costumavam protestar, ameaçavam chamar a polícia para reduzir os menestréis ao silêncio. Ignorantes, analfabetos, reacionários, replicavam os Poetas da Praça, alteando ainda mais a voz, utilizando megafones.

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