São Paulo, domingo, 25 de dezembro de 1994
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Parasita da doença de Chagas faz célula se matar

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Pesquisadores no Rio de Janeiro descobriram que o parasita causador da doença de Chagas e o vírus da Aids têm um ponto em comum: ambos provocam suicídio em células de defesa do organismo (glóbulos brancos do sangue).
É a primeira vez que esse fenômeno, conhecido como "apoptose", é descoberto em uma doença parasitária. Os cientistas acreditam que se trata de uma maneira encontrada pelo parasita de escapar do sistema imune (de defesa contra infecções).
A doença de Chagas é causada por um protozoário (animal unicelular), o Trypanosoma cruzi. Também conhecida como tripanossomíase americana, a doença se caracteriza por uma infecção inicial e por uma fase crônica, anos depois, na qual o coração é afetado.
"Existem duas maneiras de a célula morrer. A necrose, que seria uma 'morte-matada', e a apoptose, um suicídio. A morte por necrose provoca inflamação. A morte por apoptose é silenciosa, não há inflamação", diz George Alexandre dos Reis, professor de imunologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Além disso, o "cadáver" é rapidamente retirado da cena do crime. Células de defesa chamadas macrófagos engolem e digerem as células mortas.
A tática do tripanossomo e do vírus da Aids é particularmente engenhosa porque aproveita um mecanismo natural do organismo. O suicídio celular não é uma aberração, e sim um processo importante na regulagem da defesa do organismo.
O primeiro papel da apoptose foi descoberto no timo, o órgão que serve como uma "creche" de certas células de defesa, os linfócitos –lá ficam versões imaturas dessas células.
Muitos linfócitos imaturos têm sua morte ordenada por um mecanismo bioquímico, uma espécie de "botão de autodestruição" presente na célula. São eliminados aqueles cuja atividade seria nociva, capazes de atacar não os parasitas invasores, mas o próprio organismo.
Outra surpresa dos cientistas foi descobrir que linfócitos maduros também são eliminados pelo sistema imune, quando é necessário diminuir a intensidade da resposta a uma infecção.
O sistema envolve tanto proteínas capazes de suprimir a apoptose, impedindo o suicídio, e outras capazes de estimulá-lo.
"É um sistema fascinante", diz Marcela Freitas Lopes, aluna de doutorado orientada por Reis que fez a descoberta da apoptose na doença de Chagas ao estudar o que acontecia aos linfócitos T de camundongos infectados com o Trypanosoma cruzi.
Os resultados da pesquisa serão publicados em janeiro em um artigo na revista médica especializada "The Journal of Immunology". Lopes está hoje estagiando nos Estados Unidos, no Instituto Nacional de Artrite e Doenças Infecciosas, com o objetivo de entender a base molecular do sistema.
Entender o funcionamento do mecanismo poderá facilitar no futuro o desenvolvimento de uma terapia para a doença de Chagas. A pesquisa sobre o suicídio celular, além de avançar o conhecimento sobre o funcionamento do sistema de defesa, também ajuda o estudo da Aids e mesmo do câncer.
Sem o suicídio celular, que pode ser impedido pela proteína Bcl-2, animais de laboratórios desenvolveram tumores. O suicídio induzido pelo vírus HIV também explica porque cai o número de linfócitos T CD4 no doente, apesar de poucas dessas células estarem invadidas pelo vírus.

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