São Paulo, domingo, 25 de dezembro de 1994
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HISTÓRIAS DE JORGE

OTÁVIO DIAS
ENVIADO ESPECIAL A SALVADOR

Nas manhãs de janeiro, no momento em que o sol saltar das águas do mar para iluminar o céu de Salvador, o escritor Jorge Amado, 82, se sentará à mesa de trabalho na varanda da casa do Rio Vermelho e mergulhará no sempre misterioso processo de criação de mais um romance.
O 23º livro do mais bem-sucedido ficcionista brasileiro, "A Apostasia Universal de Água Brusca", parte de um fato verídico ocorrido nos anos 20 para construir o painel de um Brasil subjugado aos plenos poderes da Igreja Católica e dos senhores feudais, que, deste lado do Atlântico, são conhecidos como coronéis.
Durante pouco mais de um mês, em razão de encarniçada disputa entre um coronel onipotente e um bispo orgulhoso, uma pequena cidade do médio rio São Francisco viveu uma apostasia, uma ruptura religiosa: tornou-se protestante.
A disputa, que poderia excitar a imaginação de um estudante weberiano na era FHC –a brusca irrupção da "ética protestante" no cerne do Brasil pré-capitalista–, na imaginação libidinosa do ficcionista baiano, não ocorreu senão por obra e graça de uma mulher.
As primeiras páginas mostram o primeiro encontro do coronel com a moça. Ao vê-la, ocorre ao personagem algo que só tinha se passado três vezes na sua vida: "o coração dispara e, ao mesmo tempo, o pau sobe". Ele tem de dormir com aquela mulher. Ela, no entanto, só cede depois do casamento na igreja. Surge o conflito: o coronel já é casado e o clérigo nega-se a celebrar novo matrimônio.
A solução vem pela boca de um amigo protestante, que assopra ao ardente coronel a história de Henrique 8º. O padre é expulso da cidade e o coronel funda o anglicanismo à baiana.
As duas cenas iniciais do futuro livro são o presente de Natal do escritor aos leitores da Folha (leia à pág. 6-7). "A Apostasia", que deve ser lançado em 95, marca a volta de Amado à literatura depois de um período sombrio.
Em maio passado, ele descobriu-se com uma grave doença na vista, chamada degenerescência senil da retina. Perdeu parte da visão central, os médicos chegaram a dizer que o romancista não poderia mais ler nem escrever.
Durante meses, não pôde tocar em livro. Finalmente, acertou no tratamento, conseguiu estancar o desenvolvimento da doença.
Para voltar à profissão e ao seu maior prazer –o consumo desenfreado de romances–, Jorge teve de se adaptar. Sua máquina de escrever produz letras gigantes; para ler, utiliza uma lupa.
As idiossincrasias do "coronel Henrique 8º" adiaram, mais uma vez, a feitura de um livro que habita há anos a cabeça do romancista: "Bóris, o Vermelho".
Não se trata de um romance sobre comunistas. O personagem chama-se Bóris porque sua mãe lia folhetins e impressionava-se com as festanças na corte do czar. "Vermelho" porque o rapaz era mulato-sarará. Com esse nome explosivo, não é difícil imaginar as confusões em que ele se meteria.
O projeto inicial do romance, já se vão mais de dez anos, era dissecar os anos do regime militar no Brasil por intermédio das aventuras e da tragédia de um jovem.
Três vezes o romancista arregaçou as mangas para trazer "Bóris" à luz. Três vezes o livro, ainda imaturo, foi abortado.
Na primeira tentativa, em 1982, foi passado para trás por "Tocaia Grande". Dois anos depois, um padre progressista, personagem secundário de "Bóris", roubou a cena, virou protagonista de "O Sumiço da Santa".
Em 91, 80 páginas escritas, Bóris esteve perto de nascer. Ficou a ver navios diante de "A Descoberta da América pelos Turcos", feito em comemoração aos 500 anos de vida do Novo Mundo.
Hoje, o pai de tantos personagens entrega os pontos. Finalmente revela ao mundo trechos da vida do mulato-sarará, publicados com exclusividade pela Folha. Aparecerá um dia "Bóris" por inteiro? Sabe-se lá... Jorge escreve certo por linhas tortas.
Seus romances baseiam-se sempre na experiência pessoal. "Bóris" não foge à regra. Nos anos de chumbo, seus filhos eram adolescentes; por intermédio deles, teve contato com muitos jovens.
Em "Bóris", além da luta contra a ditadura, ele recria outro mito da época: as comunidades sexuais de Arembepe (Bahia), embaladas pelas ondas do mar e das drogas, paraíso dos hippies brasileiros.
Um dia, Amado recebe do Rio telefonema do jornalista Samuel Wainer: "Jorge, Pinky está aí, na Bahia. Pelo amor de Deus, vai ver Pinky". Pouco depois, a filha de 15 anos de Wainer com Danuza Leão bate à porta. Vestia apenas um lençol. Fez um buraco no pano, enfiou a cabeça, só.
Seja nos livros, seja numa conversa informal, Jorge Amado é um senhor contador de histórias. No final de novembro, recebeu a Folha em sua casa.
Um assunto puxa outro, duas tardes inteiras e várias taças de sorvete de frutas foram consumidas na conversa.
Ele falou de Zélia Gattai, 78, com quem comemora 50 anos de convivência em 95. Mostrou sua casa, lembrou de amigos inesquecíveis, autores preferidos, políticos que admira.
Sentado na varanda de sua casa na capital da Bahia, o romancista detalhou seu modo artesanal de escrever, falou de seus personagens. Tratou, enfim, das coisas fundamentais de sua longa e bem-vivida vida, do seu "axé", que ele revela nas páginas seguintes.

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