São Paulo, domingo, 25 de dezembro de 1994
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Droga ameaça estabilidade do Quirguistão

JAIME SPITZCOVSKY
ENVIADO ESPECIAL AO QUIRGUISTÃO

Depois de ganhar a etiqueta de a "Suíça da Ásia Central" graças à sua estabilidade e paisagens, o Quirguistão enfrenta o fantasma de se transformar na "Colômbia da Ásia Central".
O país, produtor de drogas e rota do tráfico de ópio, pede socorro, conforme enfatiza o presidente quirguiz, Askar Akaiev.
Em 1991, o império soviético se despedaçou em 15 países, com o exótico Quirguistão entre eles. O presidente Akaiev defende seu modelo, espelhado nos conceitos do Fundo Monetário Internacional, e promete dias melhores.
Além da turbulência da droga, a velocidade espantosa do milagre chinês também assusta Akaiev, um ex-comunista transformado em muçulmano e que diz rezar atualmente três vezes ao dia para pedir "tranquilidade e paz" na China. "Lembre-se que temos laços com eles ao longo de 22 séculos", observa o presidente.
Akaiev recebeu a Folha no seu gabinete em Bishkek, a capital, e se esforçou para repetir a hospitalidade tradicional dos antigos nômades quirguizes. Ofereceu chá com leite. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Folha - As ex-repúblicas soviéticas gostam de olhar para o Ocidente em busca de modelos econômicos, idéias e assessores para guiarem as reformas. Mas a economia que mais rapidamente cresce no mundo, a da China, está aqui ao lado do Quirguistão. Por que a China não é um modelo a ser seguido?
Akaiev - É verdade que estamos mais voltados para o Ocidente, mas também estamos estudando a experiência chinesa. A China é o nosso grande vizinho. A experiência chinesa tem sido muito útil para nós na agricultura.
Assim como a China, aceleramos a reforma no campo, começamos por aí. Todos sabem que as reformas na agricultura foram a locomotiva que levou a China a seu estado atual.
Por isso, já em 1991, começamos a introduzir a propriedade privada da terra, desmontando o sistema socialista. Hoje nós temos o maior setor agrícola privado entre os países da Comunidade de Estados Independentes (aliança que substituiu a URSS).
Convidamos técnicos chineses para nos ensinarem, por exemplo, a aumentar a produtividade em nossos cultivos de hortaliças. Também foram criadas várias empresas sino-quirquizes, sobretudo na área de processamento de alimentos. Assim vamos trocando nossas experiências.
Folha - E dos países ocidentais, o que o Quirguistão está copiando?
Akaiev - Tentamos usar aquilo que já se mostrou eficiente, queremos evitar erros cometidos, por exemplo, na Rússia. Estudamos com atenção a experiência dos países da Europa Oriental, que começaram suas reformas em condições semelhantes às nossas.
Refiro-me à Polônia, República Tcheca, Bulgária. Aproveitamos a experiência tcheca na área de privatizações e hoje temos o programa de privatizações mais amplo de todas as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central.
Estudamos a "terapia de choque" aplicada na Polônia, discutimos muito com o professor Jeffrey Sachs (economista norte-americano). Mas, em resumo, estamos criando nosso próprio modelo, sem copiar ninguém e ao mesmo tempo buscando assimilar experiências positivas.
Folha - Mas o seu modelo tem muito a cara das recomendações do Fundo Monetário Internacional, ou seja, priorizar estabilização financeira, eliminar inflação, mesmo que ao preço de desemprego e queda na produção industrial.
Akaiev - Bem, o sr. tem razão, mas quando o FMI e o Banco Mundial demonstraram interesse em nos ajudar, já estávamos trabalhando num programa econômico elaborado por aqui e que realmente estava de acordo com os conceitos do FMI. A primeira fase de nossas reformas tiveram sucesso.
Temos uma moeda muito estável. Em setembro, nossa inflação foi de apenas 0,2%, um recorde. Devemos fechar o ano com uma inflação anual em torno de 90% e para 1995, a meta consiste em baixar a taxa para 30% ou 40%. Trata-se de nossa prioridade para o ano que vem. Ao mesmo tempo, iniciamos a segunda fase das reformas: a reestruturação de nossa economia, de nossa indústria. Esse período deve durar três anos.
Folha - A oposição o acusa de ter "tendências ditatoriais". Através de um referendo, o sr. conseguiu se livrar do antigo Parlamento para tentar eleger, em fevereiro, um que seja mais submisso ao governo. E o sr. também mandou fechar um jornal oposicionista.
Akaiev - Eu acho que para haver democracia são imprescindíveis alguns fatores. Sou defensor da liberdade de imprensa, um forte poder judiciário que defenda os direitos e liberdades do indivíduo, forte poder para autoridades e poderes locais, e oposição forte. Sem isso não há democracia. O problema é que nossa oposição ainda é uma oposição "nomenklatura" (elite do desaparecido Partido Comunista).
Eles dividem todos em "democratas" e "partocratas". Eu não concordo com isso. Todos fomos comunistas. Se eu não fosse comunista, filiado ao PC, não teria feito a minha carreira acadêmica e me tornado presidente da Academia de Ciências (do Quirguistão).
Eu prefiro dividir as pessoas entre aquelas que apóiam as reformas e aqueles que são contra as reformas. Nossa oposição não é construtiva, não apresenta alternativas.
Mas sem liberdade de imprensa ou oposição não se pode falar em democracia. Teremos eleições livres, com a participação de 12 partidos.
Então por que nós fechamos um jornal? Eu mesmo tomei a iniciativa. Fiz através dos caminhos da lei, democraticamente. O jornal "Svboda Gorai" (Liberdade das Montanhas) fazia uma defesa sistemática do anti-semitismo. Isso era inaceitável. Publicava textos que comprometiam nossas relações com outros países, por exemplo, com a China, Israel.
Até o presidente do Turcomenistão (Saparmurad Nianzov) me ligou para reclamar de reportagens daquele jornal, que o teriam ofendido. Eu dizia, vocês (jornalistas) podem me criticar quanto quiserem, mas respeitem o presidente do Turcomenistão.
Folha - O sr. descreveu seu país como a "Suíça da Ásia Central", orgulhando-se da estabilidade e das paisagens. Mas o Quirguistão enfrenta o problema sério de ser um país produtor de drogas, em especial ópio. O sr. não teme que a etiqueta mude para "Colômbia da Ásia Central"?
Akaiev - Essa questão me preocupa especialmente. Os quirguizes nunca consumiram drogas, embora produzissem certa quantidade. Até os anos 70, 90% do ópio da ex-URSS eram produzidos no Quirguistão.
Eu mesmo trabalhei nesse cultivo. Durante as férias escolares, nos levavam para as fazendas para ajudar na colheita da papoula. Foi bom que nos anos 70 decidiram parar a produção de ópio. No Quirguistão há fontes de matéria-prima para drogas.
Quando nos tornamos um Estado independente, muitos levantaram a questão de voltar a plantar papoula porque seria uma fonte de divisas. Um verdadeiro ouro. Mas fui categoricamente contra a volta dessa plantação. Mas agora muito do ópio vem do Afeganistão, passa por aqui e segue para a Rússia e os países da Europa ocidental.
Trata-se de um impressionante tráfico de drogas. Conseguimos apreender algo, mas não são quantidades muito expressivas, devo reconhecer. A maior parte da droga passa.
Existem as autoridades locais que são corruptas e até pessoal das forças de segurança colaboram com o tráfico. Tomara que essa máfia das drogas não consiga se estabelecer de forma mais organizada.
Se eles conseguiram se estabelecer, então combatê-los será impossível. E para nós, com nossas próprias forças, é muito difícil resolver o problema.
Não temos a experiência necessária, não temos os recursos financeiros. Por isso me dirigi à comunidade internacional. Já temos um programa de combate ao tráfico feito em conjunto com a ONU. A ONU em 1994 já nos forneceu US$ 600 mil para comprarmos equipamentos, mas isso é insuficiente.
Também tive que me dirigir a outros países, em busca de mais ajuda. E para evitar que abandonemos o sonho suíço e tenhamos que enfrentar um quadro colombiano, nós dirigimos a Suíça, que se tornou um de nossos principais doadores de ajuda financeira.
A polícia suíça é muito forte, competente e agora está trabalhando num projeto para nos ajudar no combate ao tráfico. Também fomos falar com os Estados Unidos e agora estamos combinando esforços com os países da Comunidade de Estados Independentes.
Folha - No Brasil, as Forças Armadas entraram em cena para combater o tráfico. O sr. é favorável à atuação dos militares nessa questão?
Akaiev - Eu acho que podemos formar unidades policiais de elite para combater o tráfico, mas não sou a favor de lançar mão das Forças Armadas para essa empreitada. Elas podem usar essa etapa como degrau numa tentativa de expandir a sua influência, particularmente em países como os nossos, recém-independentes. Pode ser que no Brasil não haja esse problema.
Folha - Quando da independência, em 1991, o Ocidente se mostrou assustado com a possibilidade de o fundamentalismo islâmico se expandir nos países muçulmanos da ex-URSS. Por que isso não aconteceu, em especial no Quirguistão?
Akaiev - O povo quirguiz é muito tolerante. A crença religiosa por aqui sempre foi um elemento cultural, nunca houve fanatismo.
Por exemplo, não construíamos mesquitas e por isso quando os soviéticos chegaram e impuseram o ateísmo, os quirguizes disseram: Tudo bem. Eu me encontro frequentemente com líderes muçulmanos e cristãos e eles me ajudam a manter um clima de paz nacional. Mas temos alguns problemas na região de fergana, onde vivem as minorias tadjiques e uzbeques.
Eles também são muçulmanos, mas muito mais militantes. Lá, existem mais mesquitas do que escolas, as mulheres devem andar com véus.
E eles começam a influenciar parte da população quirguiz, dizendo que no lugar de um Estado democrático devemos ter um Estado islâmico, defendem a poligamia. Estamos preocupados com isso.
Folha - O que preocupa mais: o fantasma do fundamentalismo islâmico ou a instabilidade no gigante vizinho que é a China? O patrono das reformas chinesas, Deng Xiaoping, já tem 90 anos e uma saúde debilitada.
Akaiev - Temos muito medo de instabilidade na China. Veja, daqui a 10, 15 anos a China será uma incrível potência econômica e que Deus não permita turbulências por ali.
Todo dia, três vezes ao dia, rezamos a Alá para que na China haja paz, tranquilidade e prosperidade. A China será um catalisador para o crescimento econômico do Quirguistão. Lembre-se que temos laços com eles ao longo de 22 séculos.

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