São Paulo, quinta-feira, 29 de dezembro de 1994
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Gance faz seu réquiem ao cinema mudo

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

"Beethoven" é um filme sobre Beethoven. O esclarecimento não é tão inútil quando se lembra que o nome desse que é um dos maiores compositores de todos os tempos hoje está muito mais associado a uma saga canina de sucesso. Mas a dúvida pode ir além.
Ao biografar Beethoven sob o prisma de seus amores, Abel Gance (1889-1981) pensava também no cinema. Beethoven, todos sabem, foi vítima de uma progressiva surdez. Gance é um diretor que deu ao cinema mudo algumas de suas obras-primas ("A Roda", "Napoleão" etc).
Beethoven e sua surdez são, portanto, a grande ocasião para Gance fazer uma espécie de réquiem do cinema mudo. A maneira como ele procede dá a dimensão do filme. Ainda jovem, Beethoven é vitimado por um ataque de surdez. Passa algum tempo sem escutar rigorosamente nada. É o momento que Gance escolhe para traçar sua hipótese estética. Ela comporta, primeiro, um uso radicalmente subjetivo do som. Beethoven interpreta uma música ao piano. Não escutamos nada (como ele). Um outro personagem entra em cena; o som aparece.
Gance faz o som transitar assim, de um personagem a outro, tomando a liberdade de ora levar a sua narrativa como a de um filme mudo, ora como de um sonoro. O mais interessante é que o espectador embarca nesse ousadíssimo duplo registro sem sobressaltos.
Gance trabalha a sonoridade e experimenta novas formas, partindo da tradição muda. O melhor exemplo encontra-se no momento em que Beethoven se descobre capaz de "ouvir" a música interiormente. Tiremos as aspas: ele escuta mesmo, e o que escuta se transfigura em imagens.
Aqui, Gance inverte o procedimento do filme mudo: ali, a música era composta para acompanhar a imagem. Aqui, a imagem é composta em função da música, de modo a armar uma unidade. Esses achados concentram-se na primeira metade de "Beethoven" e fazem dele uma obra sublime.
A segunda metade é bem menos interessante e executa, basicamente, uma fantasia em torno da vida pessoal de Beethoven (amores infelizes, reclusão, criação musical, dificuldades econômcias).
Não que tudo isso estivesse ausente da primeira metade. É que a segunda parte assume o registro do sonoro em definitivo. As fabulosas invenções minguam e estamos diante de uma história de amor quase trivial (Beethoven apaixonado por uma mulher que se casa com outro; uma outra mulher que o ama; seguem-se arrependimentos e desencontros), mediada por um gênio depressivo e preenchida pelas entradas abusivas da Quinta Sinfonia.
Embora a imagem de Gance tenha uma composição sempre agradável, apesar dos bons atores, o filme tende a definhar. Isso é o de menos: apenas sua primeira parte já vale a visão e a revisão, de preferência de joelhos.

Filme: Beethoven (Un Grand Amour de Beethoven)
Produção: França, 1936, 120 min.
Direção: Abel Gance
Elenco: Harry Baur, Paul Pauley, Annie Ducaux
Distribuição: Opção/Continental (tel. 011/284-9479)

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