São Paulo, quinta-feira, 29 de dezembro de 1994
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Cantora fala de Garrincha e Louis Armstrong

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

Elza Soares falou com exclusividade à Folha por telefone, do Rio, sobre episódios de sua vida e carreira. A seguir, os principais trechos da entrevista.(JGC)
Ary Barroso
"Eu fui ao concurso de calouros do Ary Barroso, na rádio Tupi, para levantar uma grana pra salvar meu filho, que estava doente. Eu era muito menininha, e estava usando um vestido da minha mãe, que ficava enorme em mim. Eu estava horrível. Parecia um ET'zinho. Quando entrei no palco, o Ary perguntou de que planeta eu estava vindo. Falei pra ele: 'Eu venho do planeta fome'."
Racismo
"Eu tinha um amigo que era divulgador da RCA e compositor, Aldacir Louro, e ele levou uma pessoa da gravadora para me ver cantar na boate Texas Bar, no Leme. A pessoa me ouviu e depois disse ao meu amigo: 'Que pena que ela é preta'. O pior é que esse meu amigo também era preto. Então a RCA não me quis. Acabei gravando meu primeiro disco no fim de 60, na Odeon."
Garrincha
"O negócio dele era muito mais a natureza do que o dinheiro. Se você mandasse ele botar uma gravata, você matava o homem. Eu consegui botar sapato nele, e já foi muito. Eu que fiz ele se alfabetizar. Contratei um cara, um advogado, para dar aula particular pra ele, em casa.
A gente se amava muito, mas se desentendia por causa da bebida. Não é verdade que o Mané me batia. É que eu tentava impedir ele de beber e ele reagia. Como eu era mirradinha, ele encostava aquela mãozona dele em mim e eu caía."
Caetano Veloso
"Foi numa fase muito ruim pra mim. Eu ia pra São Paulo, trabalhar num asilo. Queria largar a arte e servir às pessoas. Estava procurando um orfanato, alguma coisa assim. Achava que estava apanhando pouco da vida.
Encontrei Caetano e disse a ele que ia deixar de cantar. Ele disse: 'Não deixe não, minha rainha'. Eu tive um ataque de choro e contei pra ele minha situação. Ele me convidou então pra ir no dia seguinte ao show do Gil no Canecão. No camarim, o Gil agradeceu a ele o presente de ter me levado.
Ângela Maria
"Quando comecei a cantar, eu tinha um rádio safado, daqueles que pareciam um caixote, pra ele falar tinha que dar porrada na cabeça dele. Nele eu escutava a Ângela Maria. Ela foi meu primeiro ídolo, minha primeira influência. É um escândalo o que ela canta."
Estudo de música
"Quando eu gravei meu primeiro disco na Odeon, o Ismael Correia e o Aloísio de Oliveira achavam que eu devia estudar música. Mas os grandes maestros da época, que eram o Astor Silva, o Oswaldo Borba, o Lírio Panicali, disseram: 'Não, se ela estudar ela vai perder essa coisa primitiva que ela tem'. Não sei se foi bom eu não ter estudado. Depois, bem mais tarde, eu estudei sax."
Blues e samba
"Eu sou uma 'samblueseira'. Mas eu não ouvia música americana quando comecei a cantar. Eu cantava blues sem conhecer. Acho que é uma coisa da raça, mesmo. Eu nasci em Padre Miguel, que, dizem, era uma área que tinha muitos escravos.
Acho que a proximidade com o blues é porque tudo veio da África. Mesmo depois que eu comecei a gravar, não tinha muito tempo de ouvir música americana. Claro que eu admiro a Ella Fitzgerald, a Billie Holiday, a Anita O'Day, a Dinah Washington, até mesmo a Tina Turner. Mas tudo começa com a tua verdade. A minha verdade é o samba."
Louis Armstrong
"Conheci o Louis Armstrong em 62, no Chile, durante a Copa do Mundo. Eu era madrinha da seleção brasileira. Fui fazer show numa cidade chilena, nem me lembro qual. Eu estava cantando e ouvi um cara tocando no trompete o mesmo som que eu cantava: 'Edmundo não quer/ saber bem onde vai/ tã tã tã...'
Era o Louis Armstrong, mas eu não sabia. Simplesmente não conhecia. No fim do show um amigo me disse que ele queria falar comigo. E me apresentou para aquele negrão que parecia um armário.
Ele me chamou de 'my daughter'. Eu entendi 'my doctor' e falei: 'Eu não sou médica, não, sou cantora'. E o meu amigo: 'Elza, daughter quer dizer filha. Faz um agrado, chama ele de my father.
Aí eu disse: 'Que é isso, nem conheço o cara vou falar de 'fóder' com ele? Quer acabar com a minha carreira?' Depois da confusão, o Louis Armstrong me convidou pra ir para a América. Mas eu não podia ir. Estava muito apaixonada pelo Mané, e além disso tinha os meus filhos. Eu era muito desinformada."
Bossa nova
"Tinha um show de bossa nova aqui naquela faculdade da Urca, em 61 ou 62, mas acho que me convidaram só para 'fazer cortina', sabe? Enquanto as estrelas se trocavam, eu devia entreter o público. Tinha João Gilberto, Nara Leão, Luizinho Eça, Ronaldo Bôscoli, Carlos Lyra –a fina flor da bossa nova. Só que quando a mulata aqui entrou no palco não deu mais pra ninguém. Foi lindo."
Novas cantoras
"Tem muita gente boa. Mas quem é que tem esse tesão todo no palco, quem é? Porque palco é uma coisa de tesão mesmo, de verdade. Quando eu vou para o palco eu digo para os músicos: 'Eu quero todo mundo gozando. Não quero ninguém saindo daqui insatisfeito.' O palco pra mim é vida."

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