São Paulo, quinta-feira, 29 de dezembro de 1994
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Romance mostra o sofrimento do exílio

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

"Ana em Veneza", de João Silvério Trevisan, recém-lançado pela Best Seller, é um dos melhores livros da literatura brasileira recente. Mesmo assim, é coalhado de defeitos.
Sua mistura de gêneros explica a maioria dos problemas. Não se trata, por exemplo, de um "roman à thèse", um romance que procura persuadir o leitor de alguma teoria sobre certo assunto.
Tampouco é uma simples narrativa do encontro de um compositor erudito brasileiro e uma mucama negra na Itália.
Esse encontro afetivo seria o choque da mente de um artista em crise com a sensualidade –à maneira de Thomas e Heinrich Mann. Mas o único afeto que os acaba unindo é o tal amor pela pátria.
A teoria, paralelamente, seria sobre a influência de uma brasileira, Julia Mann, sobre a obra intelectual desses dois filhos seus, como elemento exótico e crítico.
Mas nem tese nem narrativa se realizam em "Ana em Veneza".
O livro começa com Nepomuceno, o homem que fez o arranjo do "Hino Nacional" brasileiro, às vésperas de tentar uma carreira na Europa. Seu medo é ter a obrigação de ser, no Velho Continente, um novo Carlos Gomes –assunto de Rubem Fonseca em "O Selvagem da Ópera", que optou pela narrativa convencional.
Depois o livro passa a Ana, criada de Julia Mann, criatura amável que partirá com ela para a Alemanha, sem saber alemão nem o que a espera. Mas, ainda que sinta receio e saudade, Ana aceita firme seu destino.
Já a viagem de navio de Nepomuceno é uma travessia embalada pela ansiedade, que ele traduz em reflexões sobre a música de Bach e Mozart, a ópera italiana e sua própria carreira, num contraponto com suas lembranças de infância.
O calor e a beleza da Itália vão transtornar os sentidos de Nepomuceno. Em Veneza, conhece Domenico Mustafá, o maestro que dirige o coro da Capela Sistina. A conversa dos dois –sobre exílio e decadência, "a expulsão do Paraíso não tem cura"– é uma das melhores passagens do livro, que tem 579 páginas.
É com essas sensações e pensamentos que Nepomuceno encontra Ana em Veneza e se encanta.
Aqui, no entanto (página 355), o livro perde a toada: a cena do fascínio e o desenvolvimento da relação deixam a dever em plausibilidade, e isso num romance de teor histórico é, claro, prejudicial.
Por exemplo: Ana, nas conversas com Nepomunceno, lembra um romance que teve com um pintor alemão, Gustav. Pobre e fracassado, Gustav, quando a conhece, tem "uma visão fulminante". Basta uma idéia para Ana lhe despertar a sensualidade: o que uma mulher com aquela cor estava fazendo em Lbeck?
Em todo o trecho, porém, pouco se fala dela, mas sim da reviravolta artística vivida por Gustav. O leitor jamais conhece Ana –o personagem-título– a ponto de entender o que nela fascinou Gustav e Nepomuceno.
Além disso, ela fala um misto de português de dublagem com alemão: "Lá eu quagi me senti zu Hause", como se tivesse desaprendido a falar só em português, o que não é verossímil.
Quando mostra diálogos e ansiedades de seus personagens intelectuais, o livro é um vira-página.
Exemplo: na passagem sobre a família Mann, que fala sobre a saudade dolorosa que Julia sente pelo Brasil, pontua suas lembranças com canções ouvidas na infância, assim como Nepomuceno, quando encontra Ana, troca informações sobre lundus.
Mas, quando retrata Ana e tenta mostrar sua "experiência de vida" e humildade vital, fazendo dela um símbolo mal definido do Brasil, o livro dá a impressão de conter um oco. Trevisan cavou a piscina –a discussão sobre o sofrimento do exílio– e não a encheu de água. Preferiu a geléia geral da patriotada.
O livro tem uma ambição rara na caatinga literária brasileira: mescla ensaios sobre música e criação artística e uma trama de sensualidade, em que cada capítulo tem andamento musical. Só que não dá o ponto.
E termina num "updating", jogando Nepomuceno nos tempos atuais, a falar de João Gilberto e se queixar da mídia, o que é ridículo –porque tira a seriedade do personagem, o mais bem construído até então. Mas vale a pena ler.

Livro: Ana em Veneza
Autor: João Silvério Trevisan
Quanto: R$ 26,30

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