São Paulo, quinta-feira, 29 de dezembro de 1994
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Collor em Aspen

OTAVIO FRIAS FILHO

Quites com a lei humana e divina, os adversários dizimados pela maldição do impeachment, Collor e Rosane fecharam o ano como num "happy-end" do seriado "Dallas": em roupas de esqui, o beijo selando a vitória do mal sobre o bem.
Naquele seriado, por alguma razão, eram todos ricos, canalhas e impunes, como se a simploriedade da família Buscapé, evoluindo para os sinais de ruptura na família Walton, terminasse na desfaçatez dos Ewing.
Disneylândia do jet-set, Meca da ostentação e da frivolidade, o cenário, Aspen, não poderia ser melhor. Mas Collor não deveria estar rezando em alguma igreja, conforme recomendou ACM, com inegável tino profissional?
Surpreende vê-lo cometendo um erro –o primeiro, salvo engano– de marketing. Terá falado mais alto o desejo apenas humano de desfrutar do mais livre dos esportes, sentindo-se leve como o vento e puro como a neve, agora que o fantasma da prisão foi esconjurado?
Aliás, há um aspecto jurídico que não ficou claro. Qualquer brasileiro poderá chamá-lo de corrupto, como tem feito nos últimos dois anos, ou terá de responder por calúnia cada vez que o fizer?
Ao ser absolvido, Collor recuperou a inocência ou a possibilidade de insultá-lo deve ser considerada uma espécie de direito adquirido da população como um todo? Que respondam os juristas.
Voltemos a Aspen, escolha demasiado simbólica para ser impensada. Como um profeta, que seleciona com método a geografia de suas aparições, Collor olha da Jerusalém da grã-finagem para este pobre Brasil.
Suas idéias venceram de ponta a ponta. O novo governo o considera como precursor e caricatura: visionário de uma época rude, felizmente superada. Importa é que o sonho virou realidade e já não é preciso ir a Miami para comprar bugigangas.
Feito o serviço bruto, tudo agora são rosas. Se ele voltar será no longínquo ano 2000, quando terá dez anos menos do que FHC tem hoje, quando ninguém se lembrará do réveillon em Aspen, Colorado.
E ao mesmo tempo o ano 2000 está aí, pendurado sobre nossas cabeças, ameaçador como a fatalidade. Que pirotecnias, que integrações, que simultaneidades deverão marcar o réveillon do ano 2000!
Conheci há tempos um grupo de pessoas que se cotizaram, como num conto de Stephen King, para financiar a festa do fim do milênio, com direito até a transmissão hereditária do convite.
Para ter idéia da proximidade aterradora, basta lembrar que igual tempo nos separa da data e da ascensão do já citado Collor. O ano 2000 anula o tempo e nos torna subitamente comensuráveis com o medieval, com Cristo, com Ramsés.
Ridicularizadas até há pouco, as previsões da ficção científica ligada ao ano 2000 não estão longe de se realizar. Por toda parte a classe média internacional prospera numa explosão de hipercapitalismo.
Como em outro seriado de televisão, os Jetsons, ela vive nas alturas da atmosfera social: nunca se mostra o que acontece na base dos edifícios aerodinâmicos. Como será a vida ali embaixo?
À medida que o signo voa em nossa direção, tende a crescer a cacofonia de seitas, miséria e esoterismo até que o delírio milenarista tome conta do planeta. E no dia seguinte a mais grave das ressacas e um vazio de mil anos pela frente.

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