São Paulo, quinta-feira, 29 de dezembro de 1994
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Progredimos para a Idade Média

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Deus é testemunha do quanto aprecio e louvo as campanhas de solidariedade, agora institucionalizadas e promovidas pelas peças publicitárias que entopem a mídia. Nunca se falou tanto em cidadania e solidariedade –e abençôo do fundo do coração os beneméritos que se dedicam à causa.
Só para chatear: a onda neoliberal eleva o mercado às alturas de Divindade Suprema dos tempos pós-Muro de Berlim. A meritocracia substitui a aristocracia, os aptos serão os donos da Terra, e os excluídos, que oneram as folhas da previdência, dos hospitais, das escolas, que nada ou pouco produzem, esses que voltem aos cuidados dos montes pios, das santas casas de misericórdia.
"Se eu falasse a língua dos anjos e não tivesse caridade seria como o sino que soa" –a bela frase é de São Paulo, muitíssimo citada quando se fala em amor ao próximo.
Os interesses do Estado neoliberal são nítidos e pouco diferem aos de uma quitanda: é preciso produzir mais, vender mais, sempre pelo melhor preço, para mais investir e investir o lucro para obter mais lucro e assim investir mais, sucessivamente, cortando as gorduras da mão-de-obra, dos encargos sociais ultrapassados.
O Estado funcionaria em tamanho de bolso, apenas com uma polícia eficiente para garantir a propriedade e a regra do jogo estabelecida. Saúde, previdência e educação seriam entregues aos bons sentimentos da sociedade, tal como na Idade Média. Não faltariam peruas que levariam cestas de pão para distribuir aos famintos, novas Santas Isabeis que seriam louvadas pelos cronistas sociais e apareceriam no "Fantástico".
O Estado não pode perder tempo com os excluídos, os não-viáveis economicamente que pesam na sociedade, diminuem a margem do lucro e poluem o mercado –o Santo, o Sagrado, o Todo-Poderoso Deus Mercado.
A Idade Média nos deu as catedrais góticas e a "Divina Comédia". A nova idade média nos dará excelentes sedes bancárias e um belo catálogo de eletrodomésticos que poderemos mandar vir de Miami pelo correio.

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