São Paulo, quinta-feira, 29 de dezembro de 1994
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A transição

GERARDO MELLO MOURÃO

Nestas oitavas de Natal, a Igreja repete uma advertência milenar aos povos: façam a transição dos acontecimentos e vejam as coisas novas que eles podem trazer. É o belo canto dos "Transeamus", com o contraponto do segundo verso –"et videamus". Vamos adiante e vamos ver.
Pois o país está vivendo uma hora de transição. E todos estão na expectativa de coisas novas. Na verdade, temos todos o direito de esperar no futuro deste país jovem, embora não possamos esperar muito da rotina pobre de nosssas sucessões republicanas, que às vezes parecem fatigadas, envelhecidas e esclerosadas antes do tempo.
Com uma impiedade sistemática, uma espécie de mal de Alzheimer devasta periodicamente os órgãos institucionais, especialmente os partidos políticos, que se deterioram e frustram, de quatro em quatro anos, nossas melhores esperanças.
Os dois primeiros profetas da revolução moderna no Brasil, Graça Aranha e Mário de Andrade, não nos deixaram perspectivas muito animadoras. O homem de "Canaã" chega a ser inclemente com o destino político do Brasil, e o poeta da "Paulicéia Desvairada" apenas nos acena com um consolo de pobre, quando diz que "progredir, progredimos um tiquinho", porque o progresso, em última análise, chega a ser uma coisa natural.
De qualquer modo, todos se perguntam, nesta hora de transição, que país é este que nos deixa Itamar Franco e que país podemos esperar das promessas de Fernando Henrique.
Nem sempre é bom levar em conta as alegadas heranças que um presidente recebe de seu antecessor. Na primavera da revolução dos cravos vermelhos em Portugal, os vitoriosos justificaram seus rotundos fracassos econômicos e sociais, clamando contra a pesada herança que lhes deixara o doutor Salazar. Hoje, os saudosistas do ditador se vingam sustentando que na verdade foi pesada a herança salazarista: só em reservas monetárias o governo derrubado deixara algumas toneladas de ouro guardadas no Tesouro Nacional. Para os monetaristas e os economistas em geral, a superstição da riqueza acumulada é um valor maior que o da liberdade e da democracia. Mas isso é outra história.
A mais pesada herança que o presidente cessante deixa ao seu sucessor, além dos bilhões de ouro da reserva federal, em níveis nunca antes alcançados no país, é o índice fulgurante de aprovação ao seu governo, com cerca de 90% de apoio da opinião pública.
Itamar, na verdade, herdou um governo em bancarrota moral e administrativa, com a corrupção instalada e institucionalizada na medula do poder. Juntou os cacos do país quebrado e transferiu para o governo seus padrões de ilibada honradez pessoal. O resto veio por acréscimo, como sempre ocorre quando o senso comum, o chamado bom senso se transforma num paciente exercício de competência.
Este é o primeiro desafio que o destino impõe ao novo presidente. A opinião pública vai começar a produzir cotejos diários entre o desempenho de um e outro, o que pode criar situações temerárias e confrontos desconfortáveis.
Por outro lado, nunca a transição de poder se deu, na recente história republicana, na doçura desta lua-de-mel em que Itamar e Fernando dançam sua valsa sobre as ondas na festa de uma sucessão que parece um baile na Viena dos pobres dos salões de Brasília.
As sucessões da República, é da tradição, sempre tiveram, no Brasil, um travo de amargura. Quando não, de "happening" obsceno.
Para não ir muito longe, basta lembrar as duas sucessões de Getúlio, as de Dutra, de Café Filho e de JK. E até mesmo a de um presidente que, queiram ou não seus desafetos –o presidente Sarney–, cultivou como ninguém o respeito à liturgia do poder e ostentou sempre um corte impecável de estadista.
O sr. Jânio Quadros e o malsinado Fernando Collor de Mello proclamaram em praça pública o propósito de prender e até de esbofetar o antecessor, na hora da transmissão da faixa presidencial.
A euforia e a beleza quase coreográfica do "pas-de-deux" em que Itamar e FHC ensaiaram o balé de quebra-nozes da sucessão dão à posse do novo presidente um toque de deslumbramento tão fascinante como perigoso.
O novo presidente não foi propriamente um candidato ortodoxo do sistema democrático. Isso no sentido em que não foi o candidato de um partido ou mesmo de uma coligação.
Foi o paraninfo de uma estranha "combinazione" de forças heterogêneas e –pior do que isso– contraditórias, que vão das "loggias" conspícuas da esquerda socialista dos intelectuais engajados aos conciliábulos da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, às covas de leões dos banqueiros, nacionais e internacionais, e outros sinédrios confessáveis e inconfessáveis.
E, a bem da verdade, também de legítimas aspirações populares, poderosamente estimuladas pela mídia e até pelas remanescências da velha direita ideológica e da nova direita capitalista, empenhados todos na excomunhão política do demônio lulista.
Se essa conjunção estapafúrdia de astres e desastres, foi boa ou má, se será duradoura ou se vai desmoronar a curto prazo, é outro problema. Naturalmente, até segundo os Evangelhos nunca foi possível servir a dois senhores.
Mas o novo presidente é um homem hábil. Talvez ele descubra a fórmula, não de servir a dois senhores, mas de servir-se de dois, de dez, de 20 senhores que compõem o conglomerado ilícito que o elegeu. Do qual eu mesmo fui "minuscula pars".
Resta saber até quando o FHC conseguirá uma coexistência pacífica entre homens de bem que o elegeram, como Mário Covas, Franco Montoro, Marco Maciel, Fernando Gasparian, com figuras dúbias e viciadas, que deviam ser defenestradas da vida pública, cujos nomes ele bem sabe quais são.
A escolha do ministério do novo presidente é outro problema. Se nele se encontram nomes de primeira grandeza –não tantos quanto se alardeia– por outro lado há figuras equívocas que a nação inteira identifica e abomina.
O novo presidente julga haver formado um ministério de notabilidades. Notabilidades –"mà non troppo". Jatene, Lampreia e José Serra seriam grandes ministros em qualquer democracia do mundo. Mas até quando aguentarão certas companhias a seu lado?
E para concluir, com todo o respeito e o orgulho que têm os brasileiros pela grandeza de São Paulo, parece que até aos melhores entre os paulistas tornou-se constrangedora essa opção desvairada de nomear nove ministros da mesma paróquia.
Com licença da palavra, trata-se da decisão de um sociólogo, e não de um estadista. E como diziam meus mestres Unamuno e Ortega y Gasset, os sociólogos não sabem nada. E quando sabem, sabem "a posteriori".
Espero em Deus que, ao menos "a posteriori", o presidente acabe sabendo o que o sociólogo não sabe: o Brasil, o Brasil profundo, existe também para lá da avenida Paulista, de onde o sociólogo sorteou o surpreendente eneagrama de seu "paulistério".

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