São Paulo, quarta-feira, 2 de fevereiro de 1994
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A jurisdição do decoro

VITAL DO REGO

A chegada do relatório da CPI do Orçamento à Câmara dos Deputados com sua dupla recomendação –cassação de uns e complementação das investigações em relação a outros parlamentares– provocou controvérsia relevante sobre de que modo operar o acréscimo investigatório, à luz das disposições constitucionais, legais e regimentais, tendo a Presidência da Casa, num primeiro momento, optado por uma Comissão Especial de Sindicância e, após, cedendo a argumentos de que faltaria poder coercitivo apuratório a esta comissão, como o tem uma CPI, admitiu aquela tarefa ao corregedor, com o "assessoramento" de uma comissão especial.
Poder-se-ia, desde logo, à luz dos próprios argumentos que informaram a substituição da Comissão Especial de Sindicância pelo corregedor, apontar para a contradição formal, uma vez que os "poderes próprios das autoridades judiciais" são assinados pela Constituição Federal às CPIs, restando aí fundadas dúvidas sobre a competência correcional, de natureza disciplinar interna, para complementar investigações de fatos pertencentes ao interesse e à ordem pública.
O ordenamento parlamentar estabelece, como de responsabilidade de seus membros e atribuição regimental específica da Mesa da Câmara dos Deputados, a promoção e valorização do Poder Legislativo e o resguardo de seu conceito perante a nação (art. 15, VIII, R.I.).
Não se trata, no caso, de uma figura de retórica, mas sim do substrato jurídico que, mais adiante, se fixará nas competências de operacionalização e execução das disposições pertinentes a esse "resguardo", através da própria Mesa, do presidente, da Procuradoria Parlamentar e da função correcional.
Sem perder a referência da atribuição maior da Mesa, vértice superior da hierarquia político-administrativa, organiza-se a tutela do conceito, imagem e dignidade da Câmara, como pessoa coletiva ou de cada um de per si, através da Procuradoria Parlamentar, cujo escopo e objetivos são verificados no art. 21 e seus parágrafos do R.I.:
"A Procuradoria Parlamentar terá por finalidade promover, em colaboração com a Mesa, a defesa da Câmara, de seus órgãos e membros quando atingidos em sua honra ou imagem perante a sociedade, em razão do exercício do mandato ou das suas funções institucionais."
Outras são as independências traçadas pelo Regimento às funções de correção (não se fala em corregedoria) enquadradas no título IX, "Da Administração e da Economia Interna", capítulo III, "Da Polícia da Câmara", definidas como destinadas à manutenção da "ordem e disciplina nos edifícios da Câmara e suas adjacências" (art. 267, caput).
Não padece de qualquer dúvida, pois, que há uma divisão e definição claras e expressas de funções da Procuradoria Parlamentar e as de correção, que se pode, em síntese, apontar, uma –a Procuradoria–, como responsável pela providências de proteção externa da Câmara, inclusive com legitimidade para agir, no que tange à sua honra e imagem –perante a sociedade, diz o Regimento– e, a outra, a correcional, "no âmbito da Casa".
A vista, agora, das questões trazidas pelas conclusões da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que apurou irregularidades na confecção e execução do Orçamento da União, a Presidência da Câmara criou, primeiro, uma Comissão Especial de Sindicância para apreciar a proposta da CPI de complementação das investigações sobre aqueles senhores deputados que, embora com anotadas dúvidas sobre suas condutas, não tiveram seus nomes recomendados à perda do mandato.
A relevância e significação da matéria daria completa pertinência à Comissão Especial de Sindicância, cujos poderes são encontrados não só no Regimento Interno mas, e especialmente, na própria Constituição Federal, que defere competência suficiente para que a Casa, através da Mesa, promova essa apuração, em razão da própria matéria a ser verificada: decoro parlamentar.
Não será necessário indicar a competência legislativa deferida pela Lei Fundamental à Câmara dos Deputados, inclusive "erga omnes", para dar legitimidade às suas disposições regimentais (art. 51, III e IV), onde se encontrarão, em uma ou no outro, necessariamente, os poderes explícitos e implícitos para proceder a tudo quanto se relacione com o decoro parlamentar.
A titularidade dessa jurisdição especial –a do decoro– está claramente enunciada nos parágrafos 1.º e 2.º do art. 55. da Lex Magna, e que deixa como certa e insofismável a competência da Mesa como titular de iniciativa da proposição sancionatória (a outra titularidade é de qualquer partido político), informada pelas conclusões da Comissão Especial de Sindicância, e a ser decidida em única e última instância pelo plenário.
Veja-se, pois, que a Comissão Especial recebe por delegação os poderes respectivos, como se a própria Mesa o fizesse, para sindicar os casos e fatos trazidos à colação pela CPI do Orçamento. Não há que se confundir, na hipótese, essa atividade sindicante com a correcional disciplinar (art. 267 do R.I.) ou a promoção de inquérito (CPI), de natureza judiciária, como recortado no parágrafo 3.º do art. 58, da Constituição Federal; mas não se pode perder de vista, na expressão desse próprio dispositivo fundamental, os poderes de investigação previsto nos regimentos da respectiva Casa e atribuídos à Mesa, onde se reconhece esse potencial apuratório e coercitivo, inclusive de fundo ético entre os pares, derivado mesmo da regulamentação interna. E o que, porventura, em poderes faltasse à Comissão Especial de Sindicância sobraria, necessariamente, em pronto respaldo da soberania do plenário.
A função correcional exerce-se nos limites físicos da Câmara dos Deputados e suas adjacências, não prejudicando a remissão: manutenção da ordem e disciplina no âmbito da Casa.
Dispensa maior investigação que a matéria em exame não tem apenas natureza disciplinar, mas amplifica-se pelo Poder Executivo e outros entes públicos e pelo território brasileiro, alcançando o próprio conceito da Casa, que deve ser resguardado perante a sociedade, em suma, a nação, reclamando a intervenção direta da Mesa, como suprema comandante, responsável, depositária e destinatária da tutela do prestígio e dignidade da instituição.
Não procederá, assim, o questionamento da legitimidade e poderes da Comissão Especial de Sindicância, sem malferir a competência da Procuradoria Parlamentar e sem desapreço à função correcional antes aludida.
É imperiosa a ressalva, afinal, de que a estrutura jurídico-formal deverá ensejar a complementação investigatória, resguardando o sagrado direito de defesa e sem transigências com a impunidade, a partir da sindicância.

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