São Paulo, quarta-feira, 2 de fevereiro de 1994
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A corrupção sistemática

ROBERTO ROMANO

Corrompido e sob inflação acelerada, o Brasil não tem como impedir o tráfico de influências. O comércio de drogas e de armas, sem a venda de facilidades, torna-se ininteligível, e vice-versa. Todos os setores obscuros do poder estão implicados nesse comércio e nessa gênese. Esse circuito infernal é quase inelutável em economias sérias. Em nossa terra, ele devora as esperanças de convívio humano. Bandidos, políticos, gente comum, todos entram na sua lógica ensandecida.
Mesmo os EUA não conseguem reprimir os fabricantes e distribuidores de cocaína. Regras definem as competências dos Estados soberanos. A Suprema Corte, reconhecendo atos de policiais norte-americanos em outros países, até no sequestro de implicados, regride em termos de direito. Não raro, os produtores ligam-se ao centro de onde partiu a investida punitiva. Um governo, combatendo inimigos ocasionais de seu país, chega a usar drogas enquanto moeda de troca, aumentando a insegurança na terra que produz e na que distribui estupefacientes ou metralhadoras. Noriega ilustra o paradoxo, mas entra num sistema corruptor muito coerente.
Não existe corrupção estanque, impossível isolar os numerosos corruptos do Parlamento, olvidando os presos ao Executivo e à mercantilização generalizada de recursos públicos e particulares. Fabrizio Battistelli mostra, em estudo rigoroso, a quase impossibilidade de controlar a oferta de cocaína, de armas, de facilidades ("Armi e Corruzione", "La Critica Sociologica" 106, 1993). Atos repressivos são dirigidos para a demanda, nos países hospedeiros, "um pouco como na Idade Média se imaginava neutralizar a peste, levantando uma ponte levadiça".
E as leis? Feita uma delas, "todo empenho é posto na tarefa de eludi-la, em determinados setores da indústria e do comércio. Estes, sob oportunos olhos benévolos dos funcionários públicos encarregados de vigiar, levam armas aos países para os quais a exportação está oficialmente vetada". Em sentido inverso, o mesmo ocorre com as drogas. O fundo italiano para o desenvolvimento, governamental, pagou à Fiat os tanques comprados pela Somália falida. Passagem vertiginosa, mas há muito método nessa folia.
Giuliano Amato antecedeu o nosso João Alves no cinismo. No embargo mentiroso de armas ao Irã, a imprensa (que sempre incomoda os corruptos) descobriu depósitos bélicos nos portos italianos. Exegese de Amato no Parlamento: "Iran", nos enormes engradados, só queria dizer "Inspection and Repare As Necessary". O político ria, registra Battistelli, ao repetir esta "explicação", fornecida pelos serviços nacionais de segurança. Hienas instalam-se em qualquer plenário, nacional ou estrangeiro.
Se os produtores de armas e drogas acham muito salgada a taxa devida aos "serviços" da corrupção, eles plantam denúncias sobre corruptos reais ou imaginários, acalmando o "mercado". Várias campanhas com aparência ética têm essa origem asquerosa. O episódio PC Farias entra no sistema. Entre os bandidos notórios e os parlamentares corruptos, há uma zona cinzenta povoada pelos executivos, funcionários, gente rica e pobre. Tudo isso ocorre no sigilo, quebrado apenas pelos ocasionais delatores, os presos a um dos grupos em conflito. Clandestinidade privada e segredo oficial dão longa vida aos lucros malditos de armas e drogas.
Até 1990, um parlamentar italiano não podia ler o decreto sobre comércio estatal de armas. "Se ele pede informações sobre o texto de uma fonte menor do direito, um decreto ministerial, ouve do governo que ele não pode ser conhecido, porque está coberto pelo segredo de Estado". O remédio para esses males é a democracia e a translucidez na coisa pública. Imprensa livre e urnas servem para atenuar a "Raison d'Etat" corrupta.
No Brasil, o voto para cassar parlamentares é secreto. Nisto, ele entra no sistema acima indicado. Ao sigilo corporativo soma-se a iniquidade do Congresso inteiro na votação, entre outras, dos impostos sobre a renda. Preguiça e interesses próprios marcam a legislatura de hoje. O asco da população só aumenta. Ele só deve terminar com a renovação das urnas.

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