São Paulo, quinta-feira, 3 de fevereiro de 1994
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A mãe da bondade ainda é alimento do sonho

JORGE AMADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Cada vez que cruzo os batentes do Ilê Iya Omin Axé Iyamancê, que penetro no terreiro do Gantois, a emoção se instala em meu peito, a saudade se desata, o coração pulsa desordenado.
Evite o sal e a emoção, recomenda-me Jadelson Andrade, médico e amigo. Evitar o sal é fácil, impedir a emoção é bem mais difícil. Nas ruas da Bahia, no contato cotidiano com o povo, não faço outra coisa senão me emocionar, comover-me a cada passo. Sentir os olhos embaciados, as batidas do coração no ritmo da revolta –tanta miséria, tanta tristeza de crianças, é pesada a carga do sofrimento–, no ritmo da solidariedade e do amor. Tanta coisa feia e suja nos é dado ver nesta hora da pátria, por isso mesmo hora em que devemos ser brasileiros solidários, ativos e fraternos: mais brasileiros do que nunca.
A emoção cresce quando atravesso o salão de festas e chego às salas do museu, do Memorial de Menininha do Gantois. Aqui era o quarto pobre, simples, limpo e acolhedor. A cama não era um leito de enferma, era um trono de rainha. Apoiada nos travesseiros, o busto levantado na animação da conversa, o rosto concentrado no jogo dos búzios, no instante da adivinhação, Menininha do Gantois personificava a verdade do Brasil, de um Brasil mais profundo e mais belo, situado além da corrupção, da injustiça, da violência, da mentira, das pequenezes, da delação transformada pelos pobres homens da baixa política em suprema virtude nacional. Ai, mãe Menininha, acode-nos nesta hora de quase desespero, dá-nos o alimento da confiança e do sonho.
Aqui, neste espaço onde se reverencia sua memória, eu a recordo amiga de toda uma vida, nossas longas vidas vividas na intensidade da paixão: com ela aprendi a bondade e o povo. Me ensinou que só o povo constrói grandeza e o faz desinteressadamente, no dia-a-dia da generosidade.
Aqui a iyalorixá zelava pelos orixás e pelo povo da Bahia. "Nesta casa de candomblé... há 50 anos, dona Maria Escolástica Conceição Nazaré, mãe de santo Menininha do Gantois, zela, com exemplar dedicação e perene bondade, pelos orixás e pelo povo da Bahia": recorda a placa comemorativa, colocada na entrada do Axé, em 1972, por ocasião da festa do cinquentenário. A festa do cinquentenário de sacerdócio da mãe de santo, mãe extremosa, Menininha do Gantois –uma festa única, sem igual no mundo, só poderia ter acontecido na Bahia. No terreiro, na noite da cerimônia pública, reuniram-se à gente do povo o governador e ex-governadores, o prefeito da cidade, senadores, deputados, vereadores, os ricos e os importantes, sob o comando dos sábios, dos escritores e dos artistas. Carybé, Pierre Verger, Dorival Caymmi, James Amado, Valdeloir Rego, Mário Cravo e eu próprio constituíramos a comissão promotora dos festejos.
Na Bahia a cultura é criação do povo antes de ser vaidade e presunção das elites. Sentada em seu pobre trono de maneira rústica, ao lado direito o babalaô Nezinho, ao lado esquerdo o artesão Manu, santeiro de Exu, a Oxum mais formosa, a mãe da bondade, Menininha do Gantois recebeu as homenagens: não foram homenagens e, sim, provas de amor. Seus filhos e filhas, aqueles cuja cabeça ela tocou com a navalha sagrada, estão espalhados pelo Brasil inteiro, não há pastor evangélico ou bispo católico com prestígio igual ao seu, não há cardeal que se compare em majestade à sacerdotisa do Gantois. Pela manhã, na igreja de São Bento, o abade Dom Timóteo Amoroso, poeta, rezara a missa do cinquentenário.
Oxalá descera de madrugada, cavalgara sua montaria, Carmem, filha de sangue. Viera saudar a predileta, depositara o ebó no segredo da camarinha, dançara no pegi o baile da aliança, festa única, igual não se viu nem se verá, os deuses, os grandes do mundo e o povo inteiro reunidos em torna à filha de escravos, mãe da bondade.
Mãe da bondade, assim a saudou Dorival Caymmi na cantiga que na ocasião lhe ofertou de prenda, a "Oração para Mãe Menininha": "A Oxum mais bonita está no Gantois". "O consolo da gente, a mão da ternura."
No Gantois, templo e universidade, ela ensinou a verdade singular de nosso humanismo. O sincretismo, me disse um dia, foi realização dos negros, dos escravos, para salvaguardar os valores chegados da Africa nos navios negreiros, assim se constituiu a originalidade de nossa cultura. Oxóssi, rei de Ketu, fez-se São Jorge, guerreiro da Capadócia, o mesmo orixá, o mesmo santo da Bahia. O Oxóssi de Agnaldo –podeis vê-lo no Museu de Arte Moderna, no Solar do Unhão– é um cangaceiro do bando de Lampião em luta contra o latifúndio. O São Jorge de Calasans Neto –podeis vê-lo na entrada da casa de mãe Zélia de Euá, no Rio Vermelho–, é um índio da selva brasileira. A arte e a vida decorrem da mistura: sincretismo e mestiçagem.
As mães de santo possuem selos enormes para neles recolher as aflições dos filhos e filhas. Vejo Cleusa do Gantois, filha e sucessora, a cada vez que a vejo mais ela me recorda Menininha, a parecença se acentua. Crescem-lhe os seios da sabedoria, o passo nos corredores do Axé faz-se mais pausado, o olhar mais terno, a voz mais cálida. Eu a conheci jovem senhora, predisposta para os sucessos sociais, mas Cleusa nascera com a obrigação, o compromisso, a mãe lhe ensinara a obediência e o devotamento. Cleusa assumiu a responsabilidade, não existe tarefa mais pesada do que ser aconchego na hora do desânimo, bálsamo na encruzilhada do desespero.
Há uns dois anos fui com Zélia e Paloma visitar Cleusa no Gantois, recordar Menininha cercada por suas oxuns, iemanjás, iansans: Maria Bethânia, Sonia Braga, Gal Costa, Daniela Mercury, elas são as vozes do vento, o murmúrio das águas. Eu levava uma neta pela mão, Cleusa tocou a cabeça de Mariana e lhe disse: "–Oxóssi te espera na camarinha, iaô."
Revejo Menininha, ela persiste e continua. Cleusa conduz o mistério e o destino, nesta casa modesta do Gantois a vida se afirma sobre a morte. Reencontro Menininha, a mãe da bondade.
Tenho um privilégio raro: o de poder louvar o administrador que merece louvação, sem querer saber a cor de sua camisa eleitoral, o rótulo de sua ideologia, seu projeto, seu partido, sua seita. Nada devo a político algum, nada peço a nenhum deles; reclamo apenas de todos eles decência e bom trabalho. Louvo quem merece e o faço com alegria.
Faz pouco vim à praça pública cantar loas ao governador do Estado. Antonio Carlos restaurou o Pelourinho, obra maior, todo elogio é pouco; restituiu a fisionomia da Lagoa do Abaeté, "lagoa escura, arrodiada de areia branca", juntei-me às lavadeiras para o merecido aplauso. Ainda não saudei, no entanto, a criação, em Pituaçu, do Parque das Esculturas, de Mário Cravo, aproveito a ocasião para fazê-lo. Com Antonio Carlos a cultura, na Bahia, é prioridade.
Lídice da Mata, prefeita da cidade da Bahia, merece as palmas, o reconhecimento dos baianos, ela rompe com a estreiteza e se sobrepõe ao sectarismo. Fui aplaudi-la na sala Ariovaldo Matos, quando a governadora da cidade homenageou um escritor e jornalista que lutou contra a miséria e a opressão, pela melhoria do homem e da sociedade. Espero estar a seu lado quando ela recordar, em breve, a batalha sem quartel de um baiano ilustre na medida do povo, Carlos Marighela.
Quero acompanhá-la hoje na inauguração do Largo de Pulquéria onde, no alto da colina, se eleva a casa de candomblé do Gantois, templo tão ilustre quanto a igreja de São Francisco no Terreiro de Jesus.
Quando Lídice descerrar a placa, estará dando sequência ao tempo e às iyalorixás –Pulquéria, Júlia, Menininha, Cleusa– e então os sinos das Igrejas do Rosário dos Negros, da Barroquinha, de São Lázaro, da Basílica do Bonfim, repicarão junto com o ronco dos atabaques de todos os candomblés. Marcarão, sinos e atabaques, a hora mágica da Bahia.
A bênção mãe Menininha do Gantois, Oxum da beleza, mãe da bondade, baiana.

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