São Paulo, quinta-feira, 3 de fevereiro de 1994
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A porta giratória

JOÃO ROBERTO EGYDIO PIZA FONTES

Quando Charles de Secondat, o barão de La Brede e de Montesquieu, formulou a teoria da separação dos poderes, sua tese básica era a de que o interesse público estaria melhor protegido se as instituições patrocinadas pelo cidadão se controlassem mutuamente, sem subordinação ou promiscuidade.
Sempre que um dos poderes interfere nas atribuições de outro, a doutrina é imediatamente invocada. Mas há um tipo de superposição muito praticada e contra a qual não há reclamação: a interferência consentida, um gênero de conjunção funcional, já consagrado na cultura da administração pública nacional muito parecido a uma porta giratória.
Por ela passam de um lado para outro agentes estratégicos do Executivo, do Legislativo, do Judiciário, do Ministério Público e do poder econômico. Um dia fiscal, no outro fiscalizado. Hoje controlador, amanhã controlado.
O economista José Carlos Alves dos Santos um dia foi o homem do Congresso encarregado de abrir os cofres do governo para os parlamentares. No dia seguinte, ele vai para o Executivo tornar-se o guardião do dinheiro público, cujo papel é o de proteger o Orçamento da União da voracidade dos congressistas. E volta ele a cruzar a porta giratória para retornar à sua função de origem na Câmara. E deu no que deu.
É um rodízio perigoso. Exagerando no exemplo, seria como se donos de empreiteiras pudessem se licenciar de suas funções para, no governo, ditarem normas para licitações e depois se beneficiarem delas. É uma caricatura, mas segue a mesma lógica. Imaginem se traficantes, repentinamente, tivessem a chance de elaborar leis antidrogas, para retornar em seguida à sua atividade original.
Em São Paulo, o principal fiscal do governo –o Ministério Público, representado pelo procurador-geral da Justiça, acusado durante sua gestão por alguns de seus pares de abdicar de suas funções para proteger o governador– tornou-se secretário de Administração do Estado. Seus próprios colegas, durante a campanha para eleição do Conselho Superior do Ministério Público, atribuíam a sua atuação complacente ao desejo de ser catapultado para o Executivo, o que aliás já aconteceu antes com outros procuradores. O presidente do Tribunal de Justiça foi outro convidado pelo governador para trabalhar a seu lado.
No caso do Ministério Público e Tribunais de Contas, aliás, parece ter-se tornado desdobramento natural da carreira controlador e controlado passarem de um lado para outro como se fosse razoável uma autoridade participar de um governo num dia e no outro julgar se esse mesmo governo agiu com correção. Está na lei: são os prefeitos, governadores e o presidente da República que escolhem quem irá julgar as contas de suas administrações. Não por acaso, escolhem amigos ou colaboradores.
No MP, com que rigor zelará pelo interesse público o procurador que pode ser convidado para ser secretário do governo que ele deveria fiscalizar? Cabe lembrar, aliás, que o chefe do Ministério Público só chega ao cargo por nomeação do governador ou, em Brasília, por escolha do presidente da República.
O rodízio não tem contramão. Por mais sério que possa ser um magistrado, por exemplo, faz mal à imagem do Judiciário um ministro do Supremo Tribunal Federal presidir uma eleição presidencial questionada na Justiça e, em seguida, participar do governo. Menos bem ainda faz esse ministro passar de volta pela porta giratória que divide os poderes para investir-se novamente das funções de magistrado da Suprema Corte.
Mais tarde, quem sabe, o ministro ainda seguirá o caminho de muitos outros colegas seus: depois de palmilhar todo o tribunal, conhecer e dominar o mecanismo de decisão de seus pares, ele poderá tornar-se advogado e defender junto a seus ex-colegas os interesses a ele confiados por seus eventuais clientes.
Nas bolsas de valores de qualquer lugar do mundo, inclusive no Brasil, esse tipo de permuta é considerada criminosa. O possuidor da denominada "inside information" é proibido de operar por deter informações que outros não têm. No comércio, isso tem o nome de concorrência desleal. Na indústria, chama-se espionagem industrial.
A independência entre os poderes não deve existir para proteger a "soberania" ou a conveniência pessoal de algumas autoridades. Nem para comprometer a imagem desses poderes, mas para garantir o interesse público.
Vedar definitivamente a possibilidade de transferências seria um evidente exagero. Algo como considerar um funcionário culpado até prova em contrário. Seria salutar, entretanto, adotar-se a regra consagrada em todos os países civilizados: o interregno mínimo de dois anos para o troca-troca.
Essa carência serviria para desvencilhar o agente de laços comprometedores. Não haveria tempo para que ele se credenciasse para um cargo no governo com atos ou omissões, nem para desfrutar depois pela proteção proporcionada anteriormente, salvaguardando-se dessa forma a credibilidade das instituições.
Ou seja, o fiscal teria um motivo a menos para entrelaçar-se com o fiscalizado. E vice-versa.

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