São Paulo, sexta-feira, 4 de fevereiro de 1994
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Como vertebrar o sistema político

MARCO MACIEL

A nossa crise não é só de governabilidade. É, sobretudo, uma crise institucional que se reflete de forma profunda no sistema político. E o mais grave é que esse sistema, imobilista por natureza, se recusa a renovar, gerando um impasse de consequências imprevisíveis. Imprevisíveis porque é nessa conjuntura adversa que enfrentaremos as eleições gerais deste ano, as mais amplas e abrangentes da história política do país.
O ambiente seria outro se a revisão constitucional ora em curso tivesse sido consensuada, com o objetivo de se regenerar o sistema político e compatibilizá-lo com as expectativas e necessidades da sociedade brasileira. O problema da revisão constitucional se parece muito com a recomendação do senador Pinheiro Machado a seu cocheiro, em face da ameaçadora multidão que o aguardava à saída do Senado: "Não tão depressa que pareça medo, nem tão devagar que pareça provocação".
Uma revisão como a ditada pela própria Constituição não pode ser tão ampla que faça tábula rasa do texto em vigor, nem tão restrita que a torne inócua. Os males do país não advém do texto constitucional, muito embora algumas das reformas exigidas pelo país passem, também, pela modificação de alguns de seus dispositivos. A melhor prova disso é que as crises políticas se sucedem independentemente da Constituição em vigor. Desde 1930 tivemos crises políticas e institucionais, a despeito dos sete diferentes textos constitucionais que vigoraram no país nesse período.
Mais do que mudar, reformar ou transformar o sistema, o grande desafio brasileiro é compatibilizar pela inovação o sistema de governo com o sistema eleitoral e este com o sistema partidário. Em outras palavras, dar organicidade ao sistema político, gerador de todas as crises, inclusive a de governabilidade. Mas isso não será feito senão por consenso. E o consenso é impossível onde o sistema partidário, como no Brasil, existe, mas não funciona, que é o mesmo que não existir. O que falha no Brasil não é o modelo das instituições em si, mas sim a deficiência de sua funcionalidade. Isso não diz respeito apenas às instituições: está relacionado com os próprios poderes.
No Estado moderno não tem mais sentido falar de poderes soberanos e independentes, porque soberanos e independentes devem ser os Estados e não os poderes. No entanto, entre nós, os poderes não reivindicam autonomia: querem soberania, o que é incompatível com o princípio democrático da soberania popular. É isto que torna os poderes e as instituições políticas brasileiras invertebrados, porque invertebrado é o sistema político. Portanto, quando falamos em dar funcionalidade às instituições, em vertebrar o sistema político, estamos advogando, antes de mais nada, compatibilizá-las com as necessidades e as aspirações da sociedade.
Não é difícil concluir que a sociedade brasileira não está satisfeita com o sistema político que temos, que não é nem representativo, nem democrático, se não formalmente porque funcionalmente está longe de sê-lo. Será funcional um Congresso que aprova o Orçamento público no quarto mês do ano? Será funcional um Judiciário que leva meses para julgar um mandado de segurança e anos para dirimir uma contenda entre as partes?
Mas a insatisfação não diz respeito apenas a um dos poderes, a um dos sistemas, nem a uma instituição em particular. O estado do sistema político brasileiro é agônico exatamente porque não tem sido capaz de dar resposta adequada às demandas e expectativas da sociedade brasileira, cada vez mais articulada, cada vez mais atuante e, a despeito disso, cada vez mais desiludida. Não é sem razão que, se considerarmos as eleições proporcionais para a Câmara dos Deputados, desde 1986, o partido do voto em branco é o maior partido político brasileiro.
O grande desafio, portanto, que não pode deixar de ser respondido na revisão constitucional é exatamente o de dar funcionalidade às instituições, em vertebrar o sistema político. Vertebrar significa exatamente criar instrumentos de compatibilização entre o sistema eleitoral, o sistema partidário e o sistema de governo, ou seja, instituir mecanismos constitucionais que assegurem a governabilidade, garantam o caráter democrático das eleições, livrando-as da influência perniciosa dos interesses escusos (econômico ou de outra natureza) e assegurem o controle (e não só autocontrole) de todas as instituições.
Sem vertebrar o sistema político, jamais resolveremos nem a crise econômica, nem as desigualdades sociais, nem a crise de governabilidade e menos ainda a crise dos valores éticos que está varrendo a nação.

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