São Paulo, sexta-feira, 4 de fevereiro de 1994
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CPI e Ministério Público

JOSÉ PAULO BISOL

Conheço recente decisão do Supremo Tribunal Federal que manteve o arquivamento dos autos de uma CPI. Para os propósitos deste artigo não importa indagar se a decisão foi acertada ou errada, embora a segunda alternativa me pareça mais provável, porque o Legislativo pode arquivar seus relatórios, mas, é óbvio, não pode esconder oficialmente provas de crimes ou irregularidades administrativas. O que importa é que agora estamos acompanhando um fato que não se subsume à hipótese que foi objeto daquele julgamento.
O relatório geral da CPI do Orçamento, a partir de uma análise sob esse aspecto superficial, deixou de encaminhar ao Ministério Público provas que podem até ser insuficientes, no estágio em que estão, para sustentar o processo político de cassação por falta de decoro, mas que são expressivamente significantes, haja ou não necessidade de complementação, para os efeitos do processo penal. Houve destaque da matéria e o relatório foi mantido com apenas quatro votos em contrário.
A meu ver a questão é irrelevante porque, não obstante essa imprudente decisão da CPI, o próprio Estado, como Ministério Público ou como Poder Judiciário, tem o direito-dever de requisitar dele próprio, Estado, como Poder Legislativo, as provas cujo alcance entender necessário para o exercício de suas funções, sendo que o Estado, como Poder Legislativo, tem o dever de atender a requisição e não tem o direito de sonegar os dados. Pelo contrário, a sonegação configuraria a um só tempo, entre outras tipificações possíveis, favorecimento pessoal e real, dois delitos previstos pelo Código Penal no capítulo dos crimes contra a administração da Justiça.
É óbvio que não socorre aos parlamentares que assim se comprometerem argumentos como o da ignorância da lei ou do erro de proibição. Aliás, além de juridicamente insubsistentes, esses argumentos seriam absurdos na boca de quem faz a lei e sacode cotidianamente as estruturas do direito. Ouço, incrédulo, falar no dever de sigilo. Ora, o sacralizado pretexto do sigilo é indecoroso quando se trata de transferi-lo do Estado para o Estado, de uma instituição que já o possui e não tem competência para processar e julgar os crimes que ele oculta para instituições –o Ministério Público e o Poder Judiciário– cujo pressuposto teleológico e cuja competência consistem precisamente em processá-los e julgá-los.
Até aqui as evidências que não podem ser disfarçadas. As evidências disfarçáveis, as sutilidades, é que mais impressionam. O parágrafo 3.º do art. 58 da Constituição diz que "as conclusões" da CPI serão, "se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores".
Em primeiro lugar, embora o dispositivo só se refira às conclusões da CPI, é claro que a referência inclui implicitamente as provas, porque as conclusões de uma investigação são sempre fatuais, o que significa que as informações probatórias são suas premissas. Sem suas premissas as conclusões não são conclusivas.
O Ministério Público não tem como "promover a responsabilidade... dos infratores" só com conclusões relatoriais, por mais brilhantes que sejam. Simplesmente, as petições que assim oferecesse seriam "in limine" rejeitadas pelo juiz. A denúncia só é recebida e processada quando acompanhada, no mínimo, de um princípio de prova, que pode ainda ser insuficiente para a formulação de um juízo de condenação, mas já deve ser suficiente para a formulação de um juízo de acusação.
Mas, lá está, para gáudio da velha cultura política, a expressão "se for o caso". Os parlamentares logo a assumem como uma possibilidade de exercício arbitrário de valorações subjetivas. Para eles "se for o caso" significa "se assim decidirmos", vale dizer, usam a expressão como se ela lhes garantisse um direito à discricionariedade. Ora, só por má-fé se deixa de perceber que onde está escrito "se for o caso" deve-se ler "se por sua natureza o conhecimento das conclusões deve ser transferido ao Ministério Público". Em outras palavras, se as provas configuram uma aparência de delito penal ou de responsabilidade civil cujas correlatas ações sejam de competência do Ministério Público, o produto da investigação deve a ele ser remetido.
É importante registrar que o Ministério Público, em princípio, não lida com fatos necessariamente condenáveis do ponto de vista da certeza jurídica, e sim com fatos que, a teor da prova até então realizada, são aparentemente condenáveis. Aparência, aqui, não significa o que disfarça o fato e sim o que, à primeira vista, o revela, não sendo necessário que a revelação seja exaustiva. Aliás, em nível do disposto pelo parágrafo 3.º do art. 58 da Constituição, não é sequer preciso que as provas autorizem um juízo de acusação; basta que elas autorizem um juízo de suspeição que recomende investigação complementar.
Não obstante isso, a velha cultura política brasileira não quer encaminhar integralmente os autos da CPI ao Ministério Público, revelando nessa resistência a sua demoníaca paixão pelo poder político extrafuncional ou disfuncional. A teor da moderna constitucionalidade, os poderes políticos são meras, embora relevantes, funções do Estado; onde cessa a função, cessa o poder. Esse é, ou tem sido em outros lugares, ou deve ser o principal efeito da constitucionalidade: o poder político só é legítimo enquanto função do Estado, e essa função tem de circunscrever-se dentro dos limites da sua definição legal ou constitucional.
A medida que o poder político, pelo fenômeno da personalização e da subjetivação, se converte em disfunção, seja porque transbordou da função, seja porque a desvirtuou, o fato tem de ser definido como crime, tem de dar em cadeia. A ideologia do poder político disfuncional e personalizado alcança seu momento mais cínico e repugnante quando sofisma em cima das falsas polaridades entre o político e o jurídico e, mais sub-repticiamente, entre o político e o ético.
Nietzsche escreveu que é chato, mas a gente deve insistir nas evidências, caso contrário elas acabam não reconhecidas como tais. Esta é a razão pela qual vou terminar este artigo repetindo sua principal evidência: mesmo a menor inteligência, se inteligência é, e se dispõe de uma sabedoria minimal advinda, se adveio, da escola, do povo ou da experiência, mesmo essa minimíssima inteligência sabe que a política antes de ser política tem de ser ética e tem que ser legal.

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