São Paulo, domingo, 6 de fevereiro de 1994
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Por baixo do pano

JUNIA NOGUEIRA DE SÁ

Não há como negar que a Folha fez jornalismo, e dos bons, quando publicou na quinta-feira o programa preliminar de governo do PT. Foi o chamado "furo". A reportagem mereceu destaque na capa do jornal e ocupou página e meia daquela edição. Foi competente em descortinar propostas do partido que tem, atualmente, o candidato mais bem colocado nas pesquisas eleitorais, e o único que pode sonhar com o segundo turno das eleições. O jornal ainda se preocupou em fazê-las acompanhar de um editorial com título tão inspirado quanto revelador de suas opiniões: "PTrodáctilos".
Mas o que poderia ser o ponto alto da semana na Folha se transformou em algo que o leitor pode ter lido como uma mal-disfarçada campanha contra o PT e suas idéias. Para além do seu editorial, a Folha deu ao programa preliminar do partido, que vai ser ainda discutido e pode ganhar alterações (como seu presidente alertou ao jornal), o significado de uma cartilha definitiva e imutável, pronta para ser entronizada no Planalto. Um tratamento, portanto, descabido, que recebeu repercussão idem.
Mais. Deixou de lado seu compromisso com o pluralismo -aquele mesmo pluralismo que louvei na semana passada neste espaço-, e abriu suas páginas para um rosário de críticas contra o programa petista. Apenas de críticas. Na sexta-feira, elas começavam já no Painel do Leitor, com três cartas que desancavam o ideário petista, e prosseguiam pela página 1-8. Ali, em duas reportagens diferentes, o jornal ouviu quatro empresários e quatro deputados do PT que manifestaram, coincidentemente, opiniões muito semelhantes à do editorial da Folha do dia anterior. Não havia uma única reação de simpatia ao programa do PT em todo o jornal.
Como se isso já não bastasse, a Folha ainda publicou, na mesma sexta-feira, entrevista com Luiz Inácio Lula da Silva em que ele se recusava a comentar o programa preliminar revelado pelo jornal. "Existem cerca de 30 propostas no PT. Não sei de qual a Folha está falando", desconversou Lula. Com isso, o candidato desqualificou totalmente o empenho pelo "furo", adiou a discussão dos pontos mais polêmicos do tal programa e, pior, não foi contestado pelo jornal. É claro que Lula sabia exatamente o que a Folha havia publicado na véspera. Mesmo embrenhado na Amazônia, sua assessoria deve ter enviado cópia do jornal a ele nas primeiras horas da manhã. A Folha sabia disso também, mas deixou as palavras de Lula sem resposta.
Se é assim que começa a cobertura da campanha eleitoral, vai mal esta Folha. O jornal errou. E feio. Reproduzo aqui parte da crítica interna que assinei para a Redação na quinta-feira: "Acho ótimo que a Folha publique o programa do partido, mesmo que se trate de uma versão preliminar. Espero apenas que o jornal faça a mesma coisa com todos os partidos ou coligações que lançarem candidato a presidente, reservando a mesma dose de espírito crítico e o mesmo destaque dado ao documento do PT para essas ocasiões. O leitor sairá ganhando com isso. Idem o jornal". Seria, ao menos, uma maneira de se redimir do papelão da semana passada.
Mais do que isso, seria uma maneira de se redimir do vexame da eleição passada, quando a imprensa se ocupou mais do oba-oba em torno dos candidatos a presidente do que com seu programa de governo. O de Collor, o país acabou conhecendo na prática apenas a partir do confisco da poupança, das contas bancárias e outras barbaridades administrativas. O de Lula, ele próprio confessou recentemente que não existia. Ou seja, só depois é que se descobriu que o país ficou entre um arrivista cheio de idéias e um desarmado cheio de ideais.
É obrigação da imprensa, desta vez, reproduzir, debater, polemizar e avaliar o plano de governo de cada candidato que tenha o Planalto na mira. Faz parte de sua responsabilidade social ajudar o eleitor a conhecer cada pormenor dos candidatos, sua vida pregressa, suas propostas. De preferência, sem a parcialidade demonstrada pela Folha na apresentação do programa preliminar do PT.
O jornal tem o direito, sim, de malhar qualquer programa de governo como um Judas em sábado de Aleluia. Tem, mais do que o direito, o dever de apontar ao leitor suas imperfeições, seus anacronismos, suas distorções, suas impossibilidades. Pode escrever um editorial por dia contra cada um dos programas, até as eleições. Mas deve abrir espaço igualmente para os que os apóiam e promover sua discussão exaustivamente. Ou então estará fazendo por baixo do pano a mesma coisa que os candidatos fazem abertamente nas ruas: campanha.

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