São Paulo, domingo, 6 de fevereiro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Tempos sem iguais

JANIO DE FREITAS

A conturbação na vida política não podia ser maior. Talvez jamais tenha chegado a tanto, em tempos de normalidade institucional. Parte da conturbação é artificial e artificiosa, mas isto não diminui a dimensão da conturbação real, antes mostra a que extremo chegou. A pergunta se impõe, então: com este ambiente e com as personagens que o alimentam, é legítimo e é responsável, servirá mesmo ao país remexer na Constituição, maior senão único fundamento institucional que ainda se equilibra e, mal ou bem, se impõe à desordem econômica, social, jurídica e política? E fazê-lo, revolvendo princípios da mais alta gravidade, em apenas 25 dias?
O Congresso que tenta tocar a revisão constitucional, impulsionado pelo poder econômico, é o mesmo cuja Câmara acaba de aprovar a monstruosa devolução, dada como um crime contra o país, de nem se sabe quantas dezenas de bilhões de dólares aos tomadores de crédito agrícola desde 79. Ressalve-se que a cobrança de correção e juros, que a Câmara quer devolvidos agora, foi ilegal, com base em uma das muitas decisões do Conselho Monetário Nacional que contrariam as leis. À Justiça, porém, cabia solucionar a questão, e não ao Congresso. O que provocou a inversão, nunca aplicada à usurpação dos salários pelos planos econômicos e política salariais, foi a recompensa pela monstruosidade: para muitos agropecuaristas-deputados, a farta devolução; aos demais, a retribuição em dinheiro grosso para a campanha eleitoral.
De volta ao ponto principal, sobressai a incoerência da elite, ou poder econômico, ou o que mais seja, em querer que reformem a Constituição os mesmos parlamentares que aprovaram, uns, e deixaram aprovar, outros, o que é dado como capaz até de falir o Banco do Brasil, sem falar na invalidação do plano econômico. Aí é que está: incoerência só dos raros que ainda esperam do Congresso um civismo que lá não é mais do que residual. Os que mantêm os caríssimos "lobbies" que forçam a revisão constitucional são muito coerentes. É justamente pela existência, no Congresso atual, de alto grau de leviandade e desapego aos interesses do país, que eles insistem na revisão agora.
A força que empurra a revisão provém de três objetos de interesses econômicos: a quebra do monopólio estatal do petróleo, a quebra do monopólio estatal das telecomunicações e a liquidação das reservas indígenas, pretendida pelas mineradoras paralelamente à internacionalização do subsolo. Como, se acontecidas estas reversões, contam-se em poucas dezenas os grupos econômicos que delas se vão beneficiar, tem-se que a revisão é feita para servir a estes pouquíssimos. As propostas institucionais, tributárias e de organização do estado são, com escassas exceções, muito ruins. E não fazem mais do que o papel de lantejoulas para enfeitar a fantasia de revisão.
Você conhece as propostas organizadas pelo relator Nelson Jobim para modificações na Constituição? Viu-o apresentá-las ao país, todas e por inteiro, pela TV, pelos jornais ou outro meio? Então veja se você terá tempo de tomar conhecimento de tudo e participar, se quiser, do debate: a partir da semana seguinte ao Carnaval, quando a revisão talvez consiga pegar fôlego, até o prazo final de 15 de abril, estão previstos apenas 25 dias de comparecimento provável de parlamentares para votações revisoras, obviamente excluídas as segundas e sextas da malandragem invencível.
Nas previsões de início do ano passado, estava estimado em seis meses o tempo necessário para reformar a Constituição. Baixou depois para cinco, de outubro a 15 de março, de modo a não entrar pela sucessão presidencial adentro. Com a dificuldade para instalar a revisão, o prazo mínimo, na opinião da maioria absoluta dos parlamentares, tinha que ser de quatro meses, depois três de atividade – e o que exigiria seis meses deve agora ser entulhado em 25 dias, como se a Constituição fosse menos do que uma tabela de campeonato estadual de futebol.
Não sei de um período em que a vida política descesse tão baixo.

Texto Anterior: Boas notícias, várias
Próximo Texto: FHC se queixa de 'traição' no governo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.