São Paulo, domingo, 6 de fevereiro de 1994
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A biografia menor de Carlos Drummond

FELIPE FORTUNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Biografia é evocação –esta palavra que significa uma voz que chama (no latim, vocare). Os "Sapatos de Orfeu", primeira biografia de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), não é, contudo, uma evocação em que se perceba a voz do poeta. A começar pelo título, uma referência inexplicável ao autor de "Claro Enigma", que não faz recordar nem os seus versos nem alguma atitude sua. A pesquisa de José Maria Cançado, por pioneira que seja, chega mesmo a delinear um personagem aquém do já conhecido. Afinal, embora esquivo e fugidio, Drummond se revelou não apenas em poemas e crônicas, mas também nas entrevistas, nos depoimentos de seus contemporâneos e em muitas interpretações de sua obra.
A fama de ser um escritor avesso a entrevistas e a dar opiniões é apenas parcialmente correta: Drummond não deixou de insistir, sobretudo na última fase de sua poesia, no tom de reminiscência, de típico memorialista. Concedeu algumas entrevistas importantes, e chegou mesmo a publicar dois livros, "O Observador no Escritório" (1985) e "Tempo Vida Poesia" (1986) –testemunhos que pouquíssimos escritores terão deixado. Sem esquecer, obviamente, passagens ou crônicas de "Confissões de Minas" (1944) e de "Passeios na Ilha" (1952). Da leitura atenta desses livros é possível esboçar a personalidade literária do poeta –o mesmo que, ao organizar sua "Antologia Poética" (1962), inseriu na seção "Um Eu Todo Retorcido" poemas que ilustram aspectos biográficos.
Escrever a biografia do poeta é uma tarefa complexa: Drummond foi ao mesmo tempo um grande escritor e uma época –nele se interpenetram um modernismo saído da face mais explosiva, a poesia social e a atitude metafísica, tudo resultando, mais tarde, num modernismo tornado clássico. Em sua obra se encontram o entusiasmo e a desilusão de seu tempo. O que decerto terá faltado a "Os Sapatos de Orfeu" é maior conhecimento da história literária e a necessária concentração para que fosse realizada uma interpretação de aspectos biográficos e a obra.
Ao longo da biografia, existem estranhas ilações sobre o poeta, quase sempre escritas em tom falsamente literário, como se apenas o estilo do biógrafo já valesse uma descoberta sobre a vida do biografado. Exemplo: "Não é despropositado afirmar que o ser entre experimental e mitológico que se tornou Carlos Drummond de Andrade, e que começou a surgir nesta época (nos anos 20), passou a ser um pouco mais possível por causa do cinema." Com essa falta de domínio sobre a informação e a interpretação, é difícil duvidar da afirmação de que o poema "O Filho Que Não Fiz" não tenha sido escrito a partir da experiência da morte de Carlos Flávio, "ao contrário do que se pensa". O biógrafo não revela como obteve essa informação, que, se não explica muito sobre o poema, ao menos serviria como desmoralização de um dos maiores lugares-comuns sobre a obra drummondiana.
O estilo, mais do que qualquer insuficiência da pesquisa, impede a apreciação da vida de Carlos Drummond de Andrade: o leitor não entenderá, na simples leitura do livro, o porquê da importância do poeta. É como se a sua alta magnitude fosse uma obviedade e biógrafo estivesse convidando o leitor para a narração de uma vida em que poucos eventos interessantes ocorreram. A consulta ao índice também resulta inútil, pois alguns dos capítulos se intitulam "O Céu Que nos Protege", na fase 1886-1930, "Like a Rolling Stone", na fase 1930-1950, "Persette du Guillet", o penúltimo capítulo, e mesmo um constrangedor "O Círculo de Giz Drummondiano".
A promessa de descobertas sobre a vida amorosa de Carlos Drummond de Andrade poderia constituir matéria importante para a sua biografia, e não intromissão desajeitada. Afinal, a surpresa da sua poesia erótica (em sua maioria só postumamente publicada) fez surgir especulações naturais sobre a sua personalidade. José Maria Cançado prefere uma atitude de discrição que apenas entremostra as relações amorosas do poeta. O biógrafo exime-se de uma opinião ou, mais uma vez, de estabelecer uma relação com a obra do poeta, de onde certamente conseguiria retirar explanações elucidativas.
Encontrei 17 erros significativos de revisão. Um deles como que atualiza o título de um poema de Drummond, "A Um Motel em Demolição", quando o prédio é um hotel. O desleixo não se limita ao cochilo dos revisores. O próprio biógrafo cita duas vezes, ao longo do livro, uma coleção de livros eróticos que Drummond, segundo Cançado, indicou tanto para uma aluna da UFRJ quanto para uma professora de Santa Catarina. Repete, também, alguns versos de John Donne, embora numa das vezes com a omissão de uma rima... E se equivoca ao atribuir a Sérgio Milliet o famoso epíteto com que Mário de Andrade designou Manuel Bandeira, "São João Batista do Modernismo".
Há, porém, episódios divertidos que aconteceram com o homem fascinado por Carlitos, que o biógrafo comunica: Drummond entrava várias vezes na fila de cumprimentos, apertava várias vezes a mão do presidente do Estado mineiro, para desmoralizar uma cerimônia. Também curioso o episódio contado por Cyro dos Anjos, de um Drummond gritando para si mesmo "você é um cretino, você é um merda, um bosta" por causa do seu irrefreável erotismo. Cômico o seu pedido de demissão (afinal não aceito) por causa da presença de Alceu Amoroso Lima no Ministério da Educação, quando o pensador cristão se preparava para apresentar uma anticomunista.
A evocação de Drummond, no entanto, não se completa: em vez de salientar, de inquirir e de elucidar a figura do poeta, o biógrafo como que aceita o seu mistério. O capítulo dedicado à amizade do poeta com Mário de Andrade apenas insinua o que veio a ser uma forte influência sobre Drummond. As referências que Mário de Andrade fez em cartas a outros escritores deveriam servir para um retrato desse fenômeno raro na vida literária brasileira, o da amizade fecunda entre dois escritores.
Por outro lado, a relação entre o poeta de "A Flor e a Náusea" e João Cabral de Melo Neto é descrita a partir de um estranho "ponto de observação": como se o estilo cerebral do poeta pernambucano estivesse alterando a poesia de Drummond, quando o que se percebe é que a poesia deste sempre foi uma dimensão perturbadora para Cabral –afinal se tratava de uma poesia rigorosa, embora lírica, que parecia possuir uma densidade e um poder narrativo que custaram ao poeta de "Morte e Vida Severina" (1955) um grande esforço. Recorde-se que apenas muito recentemente, com "Crime na Calle Relator", (1987), Cabral conseguiu contar "causos" e expor a faceta do seu humor. O que jamais preocupou o autor de "O Mito", "Romaria", "O Caso do Vestido" e "Morte do Leiteiro".
Numa paródia das linhas iniciais do belo estudo que lhe dedicou Antonio Houaiss, é possível concluir: contra a perspectiva do biógrafo, de que "Os Sapatos de Orfeu" é um "narrativa emocionante, com riqueza de informações" e um "retrato acurado", ou de que o seu objetivo é o de "entreouvir a palavra" de Drummond, que não haja ilusão: esta é uma biografia menor do Poeta Maior.

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