São Paulo, domingo, 6 de fevereiro de 1994
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Caro Alceu

Tenho aqui o telegrama em que V., com extrema simpatia humana, se interessa pela minha attitude pessoal, em face dos caminhos propostos à gente de hoje. Para fixar essa attitude, eu devo contar a V. o que foi e é a minha vida, e vou fazê-lo com a sinceridade não de um depoimento, mas de uma confissão. A confiança, a amizade e o respeito que eu consagro ao seu alto espírito autorizam a intimidade dessa confissão, que é de algum modo, para mim, um desabafo.
Minha infância não tem nada de particularmente notável, a não ser a educação, que considero má, que me deram paes catholicos, muito amorosos ambos, porém um rude e outro fraco. Entre a severidade de meu pai e a doçura de minha mãe, eu estraguei a minha sensibilidade. Infância de recalques, sofrimentos, correntes subterrâneas. Aprendi desde cedo a viver para dentro, construindo o meu mundo porque não me adaptava ao de fora. Sentia-me fraco, ridículo, incapaz de acção. Estudos mal feitos: logo depois do curso primário, interrupção por doença. Uma primeira experiencia em collegio de padres –seis meses, com boas notas– e voltei à minha cidadezinha natal, onde o médico recomendou novo repouso. Passei assim dois anos lendo jornaes, revistas, um ou outro livro. Sem orientação. A esse tempo, já o problema sexual tomaria em mim um rumo errado. Outra vez um collegio de padres. Nesse, fui por dois anos o alumno que trabalha, conquista premios, mas... qualquer coisa em mim indicava a anarchia, a insubmissão e a desordem.
Acabaram me expulsando, por um pretexto frívolo e com grande humilhação para mim. Esse incidente influiu desastrosamente no desenvolvimento de meus estudos. Solto em Belo Horizonte, sem guia, sem orientação, fracassei nos estudos preparatórios. Acabei matriculando-me num curso de pharmacia, em que durante três anos eu fui o alumno sem convicção, que recebe um diploma porém nem pensa em se servir dele. Nesse intervallo casei-me. Foi um casamento de amor, precedido de uma larga experiência que nos deu a ambos um conhecimento integral um do outro. Sem emprego, sem coragem, voltei a o interior, onde fui algumas vezes um vago professor e quasi mergulhei na fazenda que meu pae me destinava e na qual coisa alguma me atrahia. Chamado a Bello Horizonte para fazer jornal e, mais tarde, fazer burocracia, aqui fiquei. Minha vida, espiritualmente, não melhorou. Ella é cada vez mais desordenada. Não tenho nenhuma cultura. Tenho livros, quasi tudo literatura de ficção, poesia, mas leio pouco e sinto mesmo dificuldade em ler. Escapam-me algumas humanidades essenciais. A curiosidade que sinto por certos estudos esbarra na falta de methodo para emprehendel-os. Literariamente, eu suppuz a princípio que devia orientar-me na prosa, que era em mim apenas o plágio de autores brasileiros insignificantes. Com o advento do modernismo fiz poesia e nella me fixei, como sendo a minha verdadeira express
ão Literária. Com o tempo, verifiquei que meus versos são apenas a transposição de estados íntimos, quasi sempre dolorosos, e hoje o que faço é só isso, apenas isso: confissão directa, ou quasi, de maguas, desvarios e desejos não realizados, reflexo dos fatos de minha vida sentimental. Quasi não posso publicar esses versos porque isso equivaleria a me mostrar nú no meio da rua.
Minha expulsão do collegio de jesuitas influiu também no sentido de accabar com toda a religião, e não era muita, que possuia do berço e de educação, mas já abalada pela irregularidade dessa educação e pelo abandono a mim mesmo em que sempre vivi, no domínio da alma.
Convicções políticas, philosophicas, estheticas, não as tenho. Nunca senti enthusiasmo algum pelo modernismo. Hoje sou um legionario porque, embora não tenha a mínima illusão sobre a origem, natureza e finalidade desse movimento, eu o considero mais interessante e sobretudo mais honesto do que a organização do Estado. Sou, portanto, um legionario sem fé.
O que me preoccupa, afinal de contas, é a solução de uns certos problemas freudianos que enchem a minha vida e dos quaes tenho que me libertar, sob pena de suicídio (em que tenho pensado inúmeras vezes, mas sem a necessária coragem) ou de loucura, para a qual não é difficil encontrar exemplos em minhas origens. Como vê, colloco-me inteiramente à margem da discussão sobre as directrizes que é dado ao homem contemporâneo escolher para o seu rumo pessoal. Vou por um desvio, que é escuro e sem alegria, e não tenho certeza de chegar ao fim.
V. talvez ficará decepcionado com a pequenez da minha angustia, a sua materialidade, a sua pobreza. Mas generoso e comprehensivo como é, terá pena deste seu pobre amigo, que realmente o estima e admira, e que lhe manda o mais affectuoso abraço.
Carlos
P.S. Com a vida afobada que levo, não reformei em tempo a assignatura da "Ordem". Faço-o agora, pedindo-lhe mandar-me os números deste anno, que não possuo. Com excepção do ultimo, trazendo um artigo do Prudente sobre meu livro, que o seu primo José Amoroso me ofereceu.
Esta carta pertence ao acervo do Centro Alceu Amoroso Lima, que abriga cerca de 27 mil documentos (de 1908 a 1983), incluindo correspondência trocada pelo intelectual com Mário de Andrade, Murilo Mendes e outros, e uma excepcional biblioteca de 18 mil volumes (tel. 0242 42-6433, Petrópolis).

A publicação deste documento foi possível graças a uma pesquisa desenvolvida com apoio do Instituto Cultural Moreira Salles, por ocasião das comemorações do centenário de nascimento de Alceu Amoroso Lima, em 1993. A grafia original foi preservada.

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