São Paulo, domingo, 6 de fevereiro de 1994
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Folha - Segundo consta, "Um Departamento Francês de Ultramar" é uma citação de Michel Foucault acerca dos seus colegas brasileiros da rua Maria Antonia –mas não havia aí uma óbvia ironia?

Arantes - Trata-se de fato de uma tirada atribuída a Foucault quando passou por aqui em 65 e fomos apresentados à Ideologia Francesa em pessoa, para surpresa nossa, filha natural do dia-a-dia das certezas de empréstimo de que sempre vivêramos. Todo mundo costumava citar com legítima satisfação uma observação de Goldschimdt, segundo a qual já éramos de fato um departamento de Filosofia tão bom quanto qualquer outro similar francês de província; ainda estávamos esperando a promoção para Paris quando Foucault completou a deixa, por certo elogiando, mas com leve intenção escarninha, pois Departamento de Ultramar também poderia ser alguma ilha do Caribe, e nós sabíamos muito bem (mas ele não) que por lá andava a existencialista Chiquita Bacana.
O título pelo menos pretende sugerir igualmente o contrário do que parece anunciar: numa muito provável e desfrutável colônia de aristocratas do nada, como diria Paulo Emílio, de fato estava se dando um caso singular de dependência cultural bem sucedida. O livro é assim um estudo desse caso preciso, e dada a natureza do enxerto, um estudo de história intelectual comparada, pois a decantação na filial confere um direito inesperado e muito específico de opinar sobre as mazelas da matriz. A graça involuntária do trocadilho de Foucault estava na sua cegueira para o fato novo: nossa colonização estava aos poucos nos desprovincianizando, e mais, o cotejo entre metrópole e periferia, em princípio desfavorável a esta última, poderia no limite implicar uma certa desqualificação das duas.
Folha - No subtítulo, você se refere à formação filosófica uspiana como "uma experiência nos anos 60". Deu certo? A formação se completou? Vamos ter um Machado de Assis na filosofia brasileira?
Arantes - Tentarei me explicar por um desvio. Achei que o primeiro estudo do livro poderia servir de prefácio –mas não a uma filosofia, como seria do meu dever, lembraria Porchat. Nele relato em primeira pessoa (com as ressalvas de praxe) justamente uma experiência de formação nos 60, porém na acepção mais trivial e neutra das duas palavras. Se eu fosse um pateta (nunca se sabe), tentaria sugerir ao leitor que o figurante aqui presente daquelas peripécias culturais tinha um pouco de Wilhelm Meister e outro tanto de Joaquim Nabuco, ou seja, de Gilberto Amado no Recife. Nem sombra portanto de romance alemão de educação estrelado por algum futuro medalhão brasileiro.
Mas se não a tomarmos ao pé da letra, essa lembrança estapafúrdia pode ajudar a compreender um par de coisas. Acontece que o comparsa menor que tomou o bonde andando na exata metade dos anos 60 era mesmo um tipo bisonho, que mal discernia o que lhe ia acontecendo à volta, na sala de aula, na cultura da cidade e na marcha batida da conjuntura nacional; mas ao contrário do desfecho clássico não o reencontraremos desasnado e clarividente ao fim do périplo; longe disso, o relato se encerra na virada da década e nosso coadjuvante, passada a revelação inaugural, nunca esteve tão enganado a respeito de si mesmo como naquele momento, exatamente outubro de 1969, maduro para cumprir o preceito do doutorado na Europa.
Mas não é esta a perspectiva do leitor, a única que importa: se não for presumir demais, ele verá que às costas do protagonista de uma história banal de aprendizado intelectual alguma coisa se encadeou, engrenando os mais disparatados e remotos ingredientes (do modernismo paulista às técnicas francesas de costurar textos filosóficos), onde antes havia apenas curiosidades sem futuro, uma tradição de interesse local se articulou, tutelando, para bem e para mal, porém com a força pouco convencional de uma configuração histórica à qual se deve satisfações, as manias do talento individual, posto doravante no seu devido lugar; numa palavra, agora sim, na sua acepção mais enfática e especificamente brasileira, verá (assim espero) que um verdadeiro processo de formação se completou.
Assim, a "formação" a que alude o subtítulo refere-se justamente ao complexo de acertos e desacertos dessa aclimatação em recinto fechado. Restringi-me porém ao epílogo. Dedico um estudo à pedra fundamental lançada por Jean Maugué na virada dos anos 30 para os 40, mas salto ato contínuo para a década de 60, e fico por ali mesmo. É que a tal formação, embora viesse germinando desde então –com a rotina francesa assegurada por Lívio Teixeira na história da filosofia, Gilles-Gaston Granger na epistemologia, o jovem Giannotti na lógica e filosofia Geral (era a rubrica do tempo)– de fato se precipitou e só se completou mesmo nos anos 60, aliás fortemente impulsionada por outro professor francês, Gérard Lebrun, que chegara em novembro de 1960 para ficar até meados de 66. Pois foi naquela década acelerada e crucial que o estilo franco-uspiano de mexer com filosofia se firmou.
Aliás também dá idéia de arremate conclusivo de um ciclo formativo a rápida sucessão das teses, o Marx de Giannotti, o Bergson de Bento Prado, o Aristóteles do Porchat –mesmo os volumes sobre Marx que Ruy Fausto vem publicando, no essencial foram todos concebidos naquele momento decisivo.
Folha - Deu certo então?
Arantes - Sem dúvida, sobretudo se verificarmos que o desejo dos paulistas de ter uma filosofia finalmente realizou-se. O problema recomeça se observarmos que essa aspiração, ao ficar para trás na sua satisfação mesma, é algo que precisa ser revisto com a simpatia devida a uma realização impressionante e vulnerável –enfim, o nosso desejo já não é mais esse. Não me perguntem qual é, para onde vai o bonde da filosofia, não sou motorneiro, mas como a coisa deu certo também, posso apenas constatar que ele vai na mesma direção dos demais bondes estrangeiros de primeira linha, o circuito já é o mesmo.
Um Machado filosófico? Ainda que fosse o caso, não seria louco de me indispor com os outros três. entendo a analogia em que se baseia a pergunta; suponhamos que seja correta: neste caso diria que dispomos não de quatro machadinhos mas de algo mais significativo, de um Machado por assim dizer coletivo, imune à antiga veleidade do pensamento filosófico original como penhor de maioridade.
Folha - Admitamos que a formação da filosofia brasileira, na sua variante franco–uspiana e nos termos e datas em que você a especificou, finalmente se completou. E agora, o que fazer?
Arantes – Se eu tivesse o topete de um modernista dos bons tempos dos manifestos a três por dois, talvez saísse por aí deitando falação no seguinte teor: está inventada a filosofia no Brasil. Porém como um problema, e não como resolução de antigos complexos nacionais. Não se trata em absoluto de uma pacificação, da carreira enfim aberta ao talento especulativo que finalmente se profissionalizou graças ao paradoxal efeito despronvincianizante do enclave colonial.
Volto ao ponto, se não for demais insistir: trata-se a meu ver da constituição de um conjunto a um tempo estreito e denso de obras, fórmulas e manias, com genealogia própria e alheia, queira ou não gravitando na órbita de um sistema cultural que por sua vez lhe pede contas em nome de um quadro local de contradições, constelação que ao se formar acrescenta ao antigo sentimento de irrelevância uma outra sensação de que a sondagem do primeiro poderá saber pôr as coisas no seu devido lugar. A meu ver, este o resultado novo. Isso posto, gostaria de lembrar que a dita invenção da filosofia brasileira representa sobretudo a constituição de um ponto de vista que até então não estava disponível, ponto de vista de dois gumes, conjugados como o famoso nexo do nacional e mundial que teria articulado a linha evolutiva de nossa experiência intelectual. Desnecessário frisar, um ponto de vista crítico.
Estou querendo dizer com isto que a crítica de filosofia no Brasil poderá enfim tomar pé, apoiada na mobilização de elementos os mais variados, até então invisíveis. Trocando em miúdos: não se pode mais no Brasil, sob pena de retrocesso, simplesmente abrir um livro de filosofia de autor nacional e principiar a argumentar à queima-roupa, como nos tempos dos "tête-à-tête" de gigantes, ou mais recentemente, quando escrevíamos como se nossos leitores fossem europeus e como se pairássemos acima do meio acanhado com o qual, era óbvio, como todo mundo sabe, nada tínhamos a ver, embora ainda o dito meio teime em nos pôr chumbo nas asas.
Folha - Você não poderia dar alguns exemplos dessa crítica filosófica?
Arantes - Já que vocês estão insistindo e como já fiz a experiência divertida de passar por marciano, dou exemplos pessoais. Vocês já devem ter percebido que no corpo do livro o pequeno estudo sobre o Porchat discrepa do conjunto pois não se trata de uma reconstituição como as demais, mas de uma apreciação crítica sobre a atualidade de um corpo doutrinário já constituído, aliás durante 25 anos de meditação sobre um conjunto de temas clássicos. Como entender um projeto neo-pirrônico para a vida mental brasileira? Com base nos azares históricos da conformação de uma personalidade filosófica em nosso meio, um outro tanto de observações sobre o teor específico de um argumento que sem querer converge com os ares ideológicos do tempo, procurei acompanhar o curto-circuito entre os pólos da equação armada pelo autor. Seria demais por enquanto pedir compreensão. Outra vantagem do ponto de vista da formação, desta vez do ângulo mais ostensivo de uma história intelectual. O que faria um profissional que conhece seu ofício, se convidado para apresentar uma comunicação em colóquio, digamos, sobre filosofia e literatura? Sem dúvida iria diretamente ao ponto, enfrentando, por exemplo, a atualidade bibliográfica de um contencioso para o qual os americanos, depois da invasão francesa e seu complemento alemão, criaram uma rubrica de mesa de congresso: "Philosophy as/and/of literature" (ignoro se já vendem em drugstore os respectivos formulários de múltipla escolha).
Na mesma honrosa contingência, só que em São Paulo (o que não muda muito, pois afinal também se trata de um centro mundial de excelência), achei que já não era mais descabido tomar o mesmíssimo problema pelo seu elo local (nem de longe o mais fraco), isto é: graças justamente à presença francesa que se sabe na formação da filosofia uspiana, acompanhando os passos correspondentes de Bento Prado Jr. nos anos 60, alcançar enfim o miolo vulnerável da Ideologia francesa da literatura, dela retornar à sondagem da experiência brasileira por parte de nossa melhor crítica literária, para então apreciar a gravitação de conjunto desta constelação, que tanto apanha localismos brasileiros como a atual coreografia da imensa província franco-americana.
O mesmo para o capítulo brasileiro do marxismo filosófico, cujas origens paulistas procurei identificar em pormenor nas intervenções de Giannotti e Ruy Fausto nos anos 60. Ora, se quiser estudar o desconcerto do pós-marxismo no âmbito da atual lógica cultural da globalização capitalista desintegradora, que os grandes pontífices da Teoria dizem tratar-se de mais uma mudança de paradigma, creio que um brasileiro, conhecedor do único ponto de apoio de que dispõe para observar o sistema que o está inviabilizando, deveria reabrir, por exemplo, os escritos do Giannotti dos últimos anos, quando um capitalismo desgovernado, desmesurado (sem medida?) atropelou-lhe a obra ontológica em andamento (uma verdadeira falta de consideração), jogando-o nos braços de outro paradigma (uma sorte). E já que ando vendo fantasmas como filosofia brasileira, estou mesmo condenado a estudar meu amigo e professor José Arthur Giannotti. Agora, quanto a saber se é por aí que vai o bonde da filosofia, são outros quinhentos.

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