São Paulo, domingo, 6 de fevereiro de 1994
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Para onde caminha o bonde da filosofia?

FERNANDO DE BARROS E SILVA; VINICIUS TORRES FREIRE
DA REPORTAGEM LOCAL

Como foi criada essa orquídea obscura e escondida, a filosofia brasileira ou –melhor e talvez a mesma coisa– uspiana, e pôde se desenvolver e dar seus raros, mas rigorosos, frutos? Em "Um Departamento Francês de Ultramar" (que será lançado em março pela editora Paz e Terra), Paulo Eduardo Arantes, 51, especialista em Hegel e professor de filosofia da Universidade de São Paulo, responde que foi preciso importar uma "estufa" velha de um século e meio, um conjunto de métodos e técnicas de estudo da história da filosofia, tal como é praticado na universidade francesa.
O método chegou à USP nos anos 30, com professores como Jean Maugué, mas só iria se cristalizar na década de 60, por obra dos primeiros quatro mestres formados pela tradição francesa –Bento Prado Jr., José Arthur Giannotti, Oswaldo Porchat e Ruy Fausto–, que ensinavam na rua Maria Antonia. A estufa afastou a filosofia franco-uspiana da "realidade brasileira" e dos debates doutrinários disparatados, colocando-a na linha do aprendizado escolar rigoroso.
Este aprendizado criou um sistema de obras e público leitor qualificado –"os paulistas desejosos de ter uma filosofia", uma paráfrase conceitual emprestada à "Formação da Literatura Brasileira", de Antonio Candido. O livro de Arantes reconstitui as etapas dessa formação e tem como ponto de fuga a questão: o que se pode esperar da filosofia brasileira daqui em diante? No objeto de Antonio Candido, o resultado do "desejo dos brasileiros em ter uma literatura" foi Machado de Assis. Paulo Arantes, no entanto, ainda não sabe dizer para onde vai o "bonde da filosofia": "Não sou motorneiro", diz.
*
Folha - Como você acha que o livro vai ser recebido? Como uma história intelectual do departamento de Filosofia da USP, um inventário de anedotas, ou o quê? Qual será a reação dos filósofos, em especial dos "objetos" do livro?
Paulo Arantes - Acho muito provável que o livro caia no vazio, sobretudo nos círculos filosóficos de alto nível. Se têm razão os formadores da opinião filosófica nacional, poderei contar quem sabe com alguma compreensão da parte mais esclarecida do baixo clero. E mesmo entre os representantes do "atraso", como são denominados naquelas esferas superiores os energúmenos (na acepção exata do termo) da "filosofia brasileira", creio que haverá muito malentendido e nenhuma simpatia. Em dois minutos vão reparar que o antipático adjetivo "uspiano" comparece com uma irritante insistência, e concluir que no fundo estou advogando a causa da oligarquia intelectual paulista, a pior de todas, porque posa de moderna e radical. Estou esperando portanto fogo cruzado, sempre na hipótese otimista de ser lido. Não estou bancando o autor maldito, não –e como poderia com um assunto tão prosaico?–, mas apenas lembrando, para começar, que o estudo da repercussão desencontrada do livro faz parte dos termos da questão.
Folha - Mas você não está se precipitando? O livro ainda nem saiu...
Arantes - Conheço o meu time. Além do mais acontece que na forma de artigo ou fala ocasional o meu assunto vem pingando há uma década. Tempo suficiente para armazenar uma boa coleção de opiniões a respeito. Para vocês terem uma idéia, uma pequena amostra, começando pelo topo da hierarquia. Ficou logo estabelecido que eu seria o assim chamado "legítimo herdeiro" de João Cruz Costa. Nada a opor, com muita honra. Só que no meio onde me criei, Cruz Costa quer dizer: velhinho simpático, contador de piada meio debochado, sem a menor bossa ou apetite filosófico, nacionalista, historiador de coisa nenhuma, a saber, pensamento tupiniquim, como se dizia antigamente.
Confirmei o acerto do prognóstico anos depois, agravando ainda mais o caso, quando publiquei um livrinho sobre Antonio Candido e Roberto Schwarz ("O Sentimento da Dialética"): aí já não havia mais dúvida, juntando dialética (ou coisa que o valha) com matéria brasileira refratária à conceituação filosófica, tornara-me candidato a coisa pior, a Álvaro Vieira Pinto, o padroeiro do supracitado "atraso". Mas fosse qual fosse o modelo adotado, estava era perdendo tempo, devia voltar a estudar Kant, Aristóteles, e se possível Wittgenstein, se quisesse me atualizar um pouco.
Uma história do departamento? Vá lá, mas que pelo menos respeitasse as verdadeiras dimensões do objeto. Mas como saber ao certo? Se o colega estava no momento indisposto com o dito departamento e seu passado suspeito, era mais uma vela para um mau defundo. Acresce que estava idealizando, varrendo muita coisa para debaixo do tapete, apresentando aos mais jovens uma escolinha risonha e franca que nunca existira. E ainda por cima uma história externa, sem análise das obras, e mais, quando um ou outro fragmento de juízo crítico dava o ar de sua graça, não havia argumentação, só impressões. Quanto aos mais jovens, tanto uspianos quanto de outras denominações, parece que se chegou à seguinte conclusão: o Paulo já cumpriu com a obrigação, fez direitinho o seu doutorado sobre tema do repertório clássico, tem agora o direito de se divertir.
Em suma, aposentei-me precocemente, mas em compensação deveria retribuir tamanha boa vontade servindo uma dieta bem gorda de mexericos históricos. Alguns no entanto não se conformam com o desperdício (de minha parte não me canso de agradecer-lhes a homenagem póstuma), confiando na existência de uma mola filosófica mais substantiva debaixo de toda essa "petite histoire" –o neopragmatismo, como já ouvi uma vez.
Folha - A que você atribui esse desencontro?
Arantes - Para começar, cometi um pecado mortal, embora não tenha sido o único nem o primeiro, dando a entender que estava agora levando a sério filosofia brasileira. Vocês estão rindo, mas havia motivos históricos para a interdição. Vejam o caso da literatura, onde a tradicional preferência dada aos temas brasileiros, para estudo ou inspiração, sempre teve conotação progressista. Com a filosofia deu-se exatamente o contrário. Como renasceu em São Paulo na condição de especialidade universitária, o sentimento oposicionista era reforçado pela mais estrita fidelidade à norma européia, amplamente confirmado pela evidência municipal.
Nossos rivais eram a prova caricata de que só mesmo a direita, por inépcia e vezo apologético congênito, tomava ao pé da letra os Farias Brito e consortes. Por isso, Cruz Costa conseguia exasperar todo mundo: era universitário e no entanto convidava os futuros filósofos a seguirem o exemplo de Euclides da Cunha, era de esquerda mas apreciava os argumentos antimetafísicos de um prócer local como Clóvis Bevilácqua e, para completar, juntava-se ao padre Leonel França na caçoada dos filósofos nacionais.
Não é bem este o meu caso. Não estou recomendando aos alunos o estudo da obra do dr. Pereira Barreto, mas que prestem a devida atenção nos ditos e feitos de José Arthur Giannotti, Oswaldo Porchat, Bento Prado Jr., Ruy Fausto etc. A ser assim, devia ficar mesmo incômodo manter o tabu acerca do assunto nacional. E quebrá-lo era correr o risco de más companhias. Desconcerto agravado pela minha antiga condição de profissional aplicado. Tivesse estreado filosofando sobre Canudos ou a Antropofagia, a conversa seria outra e possivelmente não estaria aqui para contar a história.
Para concluir este ponto: a enorme importância dos meus maiores não se encontra exatamente no lugar onde eles sempre imaginaram que ela estivesse –por exemplo, nas altas paragens do pensamento, onde aliás evoluem todos com natural desenvoltura, sem nada ficar devendo ao similar importado. Ora, não é que vem uma cria da casa anunciar –eu–, entre outras ninharias, que passarão à história (isto é garantido) porque souberam em boa hora favorecer a formação de uma rotina? Assim, onde se esperava com toda justiça farta distribuição de medalhas, há apenas a reconstituição miúda de um processo objetivo impulsionado por uma boa dose de auto-engano, a que se deve entretanto o primeiro momento orgânico de vida filosófica no Brasil.
Folha - Até agora você deu apenas indicações de que o livro não é. Qual o sentido da palavra "formação" que figura no subtítulo? É uma referência conceitual à "Formação da Literatura Brasileira", de Antonio Candido?
Arantes - Sem dúvida, aliás um segredo de polichinelo. Em nenhum momento deixo de aludir ao fato (deveria até ter sido mais discreto, como seria do gosto do pai da idéia) de que o meu esqueminha está inteiramente apoiado na idéia de "formação" que Antonio Candido, encerrando um ciclo de ensaios clássicos de interpretação do Brasil, desenvolveu para o caso particular da literatura brasileira. Ele revirou de alto a baixo a interpretação do nosso passado literário, reapresentado como o vir-a-ser de uma constelação de obras, autores e público –um campo histórico de influências artísticas entrecruzadas– que na sua trajetória ia aos poucos convertendo surtos desgarrados em vida literária efetiva. Ora, se observarmos bem, veremos que estava ali, nessa apropriação crítica e muito refletida da idéia de formação pelo raciocínio literário, a chave da compreensão da evolução de conjunto da cultura brasileira.
Se percorrermos um a um os principais componentes de nosso sistema cultural –e por sistema devemos entender justamente aquele nexo orgânico de produção e recepção coletiva que Antonio Candido definiu por oposição às manifestações avulsas do talento individual–, do teatro às artes plásticas, passando pela música, pelo cinema, pela arquitetura, verificaremos, com uma surpreendente regularidade, que onde os surtos inconclusivos foram a regra, anulando muito esforço intelectual acumulado, o ciclo formativo excepcionalmente completado passa a ser o prenúncio da dependência ultrapassada, graças ao surgimento de uma causalidade interna acelerando o processo de maturação do referido sistema cultural, momento em que o inevitável influxo externo passa a ser incorporado com a devida sobriedade.
Estava armado o esquema de que eu precisava, o ponto de vista que tornava enfim visível o meu assunto, o lugar ocupado pela filosofia na formação e funcionamento do sistema cultural brasileiro –como era de fato muito lateral, ficava mesmo difícil enxergar alguma coisa. Em primeiro lugar, passava a dispor, para efeito de confronto histórico e consequente apreciação crítica, de um termo de comparação privilegiado, o foco original do sistema cultural em questão, a literatura, estudada pelo mesmo Antonio Candido na sua função de princípio organizativo central de revelação e sondagem da experiência brasileira.
Em seguida, podia afinal compreender o infortúnio de Cruz Costa, que não se devia apenas à má sorte de lidar com um material de segunda. Por mais que procurasse cotejar, para a seguir avaliar e discernir uma fisionomia mental que melhor nos exprimisse, a evolução histórica nacional e o correspondente desenvolvimento da filosofia no Brasil, ficava sempre na mesma, sempre às voltas com alguma fantasia sem proveito: é que o desejável desenvolvimento da filosofia no Brasil, dos primeiros leitores de Victor Cousin à filosofia da vida de um Graça Aranha, era pura e simples fantasmagoria (à qual Machado de Assis fez justiça no capítulo do Humanitismo e demais elucubrações conexas), ruminação de devoradores de livros abstrusos correndo por uma pista inexistente.
A única acumulação que havia era a de disparates (aliás nem sempre inocentes, pois ornamentavam às vezes muito jogo bruto). No lado da experiência literária, a natureza específica da configuração artística da realidade assegurava à sucessão das obras um mínimo de continuidade social. Na filosofia, que não era representação mas juízo, não se passava rigorosamente nada –corria por fora da formação do sistema cultural brasileiro.
O fato é que a cultura filosófica, para funcionar, tem que viver no circuito fechado de uma instituição especializada. Ora, a cadeira de filosofia regida por um professor europeu na recém-fundada Universidade de São Paulo era justamente a estufa de que tanto carecíamos. Deu-se então um disparate a que devemos nosso ganha-pão. A formação que não houve enquanto nossas cogitações filosóficas levavam vida pública, porém arrevesada, subitamente engrenou graças a um transplante organizado: o de um conjunto de métodos e técnicas intelectuais cristalizado na tradicionalíssima cultura filosófica universitária francesa.

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