São Paulo, domingo, 6 de fevereiro de 1994
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O pênis ou a vida

MARIO VARGAS LLOSA
DO "EL PAÍS"

Num livro de ensaios recém-publicado, "El Caimán Ante el Espejo" (Miami, Flórida, Ediciones Universal, 1993), Uva de Aragón Clavijo propõe uma tese polêmica: a violência política que ensanguentou a história da América Latina, e a de Cuba em especial, seria expressão e consequência do machismo, da "cultura homocêntrica" profundamente enraizada em todo o continente.
"O militarismo e o caudilhismo, males endêmicos em nossa América", diz ela, "têm, a nosso ver, sua origem no culto à virilidade". E em outra página de sua inquietante exposição ela sintetiza as três décadas e meia de revolução castrista com a seguinte alegoria, que os censores de filmes de minha juventude teriam qualificado de imprópria para senhoritas: "Um só homem penetrou um povo fêmea, que abriu as pernas ao recebê-lo. Passado o primeiro orgasmo de prazer, de nada serviram os genuínos impulsos em busca da libertação. O peso bruto da força masculina ainda cativa alguns, assassina outros e controla a maioria".
Na noite do lançamento do livro, na Universidade Internacional da Flórida, em que estive presente, o apresentador Carlos Alberto Montaner, com seu humor e contundência habituais, concluiu que a receita de Uva para que reinem a paz e a tolerância em nossos povos é que a cultura da América hispânica "seja capada". Ele mesmo me assegurou, mais tarde, que do pódio em que se encontrava pôde perceber nesse segundo um movimento de recuo na platéia, e que todos os cavalheiros ali presentes apertavam os joelhos.
Infundado temor em se tratando de Uva de Aragón Clavijo, benévola amiga que sei ser incapaz de perpetrar semelhante cirurgia, sequer num galo ou coelho. Seus extremismos jamais ultrapassam o campo intelectual. Mas, enquanto debaixo do ardente sol da Flórida, em meados do ano passado, Uva elaborava suas alegações teóricas contra o que algumas feministas batizaram de falocracia, outra "hispânica" dos Estados Unidos, uma jovem equatoriana educada na Venezuela, Lorena Gallo, sem metáforas de qualquer espécie e da maneira mais crua possível decapitava sexualmente seu marido, um ex-marine, ex-chofer de taxi, ex-operário da construção e atual porteiro de boate, com um nome que soa como um programa de vida: John Wayne Bobbit.
A história deu a volta ao mundo e aqui, nas últimas semanas, não se tem falado em outra coisa nos jornais, nas rádios, na televisão e em todo lugar, como se um fantasma ainda mais assustador do que o do célebre "Manifesto" recorresse esta sociedade de cabo a rabo: o complexo de castração. (Me refiro ao fantasma do "Manifesto" de Karl Marx, evidentemente, e não ao de Valerie Solanas, autora, três décadas atrás, como recordarão algumas pessoas, de um "Manifest for Cutting up Men" –Manifesto para recortar os homens–, que o momento atual ressuscitou e fez voltar à moda e que, em meados dos anos 60, em Nova York, desferiu três tiros contra o pintor Andy Warhol, não por causa dos espantosos quadros que ele perpetrava mas pelo delito genérico de ser homem).
Os fatos ocorridos são minúcias desdenháveis, quase prescindíveis, comparados com seu corolário. O verdadeiro espetáculo veio depois. Num primeiro momento, quando o fato acabava de chegar ao primeiro plano dos noticiários, pareceu que o herói da história seria John Wayne Bobbit, por ser americano, além de decapitado e remendado (seu pênis foi reimplantado), e a vilã Lorena Gallo, por ser vitimária, e também por ser imigrante recente e "hispânica". Foi o que pareceu indicar o fato de o Tribunal de Manassas ter absolvido John do suposto delito de estupro na noite de 23 de junho, além de sua bem-sucedida aparição no programa de Howard Stern, cujos ouvintes ofereceram doações de mais de US$ 200 mil para cobrir os gastos de sua defesa.
Mas então veio a mobilização e o formidável contra-ataque dos movimentos feministas, que em poucas semanas levaram a uma reviravolta total na situação e converteram Lorena Gallo numa Joana d'Arc da luta pela emancipação da mulher e a defesa de seus direitos pisoteados, desde a mais remota pré-história, pela injusta sociedade patriarcal, e John Wayne Bobbit numa encarnação maligna e justamente castigada desta última, sob o protótipo da abusiva besta falocrática que desde a aurora da civilização discrimina, anula e sodomiza –física, moral, psicológica e culturalmente- a mulher, impedindo-a de realizar-se e assumir sua humanidade de maneira cabal.
A psiquiatria foi a ponta de lança da defesa, no tribunal que julgava Lorena Bobbit. Uma das três psiquiatras convocadas pela defesa explicou que o objeto que Lorena cortara não era em absoluto o que parecia, ou seja, uma protuberância cilíndrica feita de carne, veias e restos de esperma. O que era, então? Um coeficiente abstrato, uma estrutura simbólica, um ícone emblemático do horror doméstico, da sujeição servil, dos golpes que Lorena recebeu, dos insultos que martirizaram seus ouvidos, dos vis arquejos que se abatiam sobre ela nas noites alcoolizadas de seu marido. Com impecável sentido de efeito teatral, a doutora concluiu: "Para Lorena Bobbit a alternativa era simples: o pênis ou a vida. O que é mais importante, o pênis de um homem ou a vida de uma mulher?"
Paralelamente a esta ofensiva intelectual e científica, as militantes se multiplicavam nas ruas. Aos movimentos feministas vieram somar-se, na defesa de Lorena Bobbit, múltiplas entidades representativas das comunidades "hispânicas" nos Estados Unidos, que proclamavam que o que estava em jogo diante do Tribunal de Manassas não era um suposto delito sexual e sim um delito étnico e cultural, um caso típico de abuso e discriminação do desvalido imigrante latino-americano pelo anglo-saxão prepotente, racista e explorador. Do Equador, uma multidão feminina ameaçou "castrar cem gringos"se Lorena fosse enviada para cumprir um único dia de prisão.
Num de seus lúcidos ensaios, "Matando um Elefante", George Orwell conta como, quando era policial do império britânico na Birmânia, teve que matar a tiros um pobre elefante que estava solto pelas ruas da cidade, porque a pressão exercida sobre ele pela multidão nas ruas não lhe permitiu fazer outra coisa. Deve ter sido essa a situação psicológica dos pobres jurados do Tribunal de Manassas, sobre os quais recaiu a responsabilidade de julgar Lorena Gallo, que eles naturalmente absolveram, proclamando que sua ação havia sido ditada por forças irracionais irresistíveis.
Não digo que, julgando com imparcialidade, deveriam tê-la condenado. Digo que, nas condições de verdadeira histeria nacional -e talvez internacional- em que tiveram que exercer sua função de juízes, não era possível haver imparcialidade ou lucidez, e talvez sequer um mínimo de racionalidade de sua parte. O julgamento não o foi; foi uma representação política, na qual entraram em ação todas as tremendas forças contraditórias e adversárias que mantêm a sociedade norte-americana de hoje em estado de crise permanente. Será este um sintoma de saúde, de constante renovação, ou de anarquia e decadência? Até pouco tempo atrás eu acreditava que era o primeiro; agora, como Saul Bellow, acho que talvez seja o segundo.
Não quero tirar nenhuma conclusão porque todas elas saltam aos olhos. Eu me limitarei a continuar dando minhas aulas, duas vezes por semana, sob o gelo e a neve de Washington, olhando para o teto para que nenhuma de minhas alunas me acuse de "molestamento visual" e protegido por grossas calças impermeáveis, para me proteger do frio e de qualquer acaso.

Tradução de Clara Allain

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