São Paulo, domingo, 6 de fevereiro de 1994
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Ascensão e queda da cidade moderna

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Urbanidade, até os anos 50, era um elogio. Definia os modos de um sujeito civilizado que concede ao próximo a mesma honra, ainda que seu adversário diametral. Cinco livros que estão sendo lançados relembram os momentos em que essa urbanidade atingiu ápices de vitalidade e criatividade: "Londres, 1851-1901", organizado por Monica Charlot e Roland Marx, "Berlim, 1919-1933", por Lionel Richard, "Os Anos Loucos", de William Wiser, "Bloomsbury", de Quentin Bell, e "Todas as Cidades, a Cidade", de Renato Cordeiro Gomes. E fazem pensar por que a palavra "polidez" já não parece ter vindo de "polis".
As cidades, desde os tempos de Sócrates, são o lugar em que os homens se encontram para conversar e discutir, para desfrutar de prazeres sofisticados. Na Grécia antiga, a propósito, as termas não eram apenas lugares de banho, mas também verdadeiros antecessores dos chamados "centros culturais", providas de biblioteca, teatro e restaurante. Lá os homens consumiam várias horas de sua semana, quase as mesmas que hoje se desperdiçam diante da TV. O que esses cinco livros mostram é exatamente isso, que as cidades exigem vida dinâmica, com tudo que isso sugere de atrito e insegurança (a violência é uma característica de qualquer grande cidade, desde que elas surgiram), e com tudo que sugere de prazer e criação. "Prefiro o céu pelo clima; o inferno, pela companhia", disse Mark Twain, e a frase bem poderia se aplicar às cidades.
Os volumes sobre a Londres vitoriana e a Berlim modernista (da coleção "Memória das Cidades" da editora Jorge Zahar) são retratos de uma vida complicada e irritante, repleta de problemas e desigualdades, e não os relatos habituais sobre as maravilhas da civilização. Apesar disso, os nostálgicos têm muito do que se alimentar neles –mesmo porque não havia então esse tormento da vida contemporânea chamado trânsito. Ao mesmo tempo, os livros são descrições de momentos-chave da civilização ocidental moderna cujo futuro não seria menos que negro. O fim do período vitoriano, com todas as suas ilusões sobre a coesão da sociedade inglesa, é conhecido: a Primeira Guerra. O fim da República de Weimar, idem: a ascensão nazista.
O subtítulo do livro sobre Londres é "A era vitoriana ou o triunfo das desigualdades"; a tese, que a capital inglesa representava a "sociedade dual" por excelência, bipartida entre uma elite a usufruir de confortos inéditos na história e um proletariado a chafurdar em jornadas de trabalho extensas e extorsivas. Ou seja, eis a Inglaterra descrita por Marx em "O Capital" e por Dickens em "Nicholas Nickleby". O melhor do livro, não à toa, fica nas pequenas informações, nos relatos de características em geral negligenciadas.
Vemos uma Londres malcheirosa, vemos seus "émigrés" franceses cultivando "spleen" terrível, vemos a alta sociedade e suas etiquetas rigorosas como nunca, vemos os vendedores ambulantes judeus berrando um misto de inglês e ídiche. Curioso que a morfina, que segundo o historiador A.J.P. Taylor era consumida à exaustão pela classe alta inglesa, não aparece no livro.
Há também descrições, que poderiam ser mais longas, dos intelectuais fabianos –Bernard Shaw era o maior dentre eles– em seus debates fervorosos e quase diários, os artistas ditos "pré-rafaelitas" nos salões conturbados de Dante Gabriel Rossetti, os escritores entornando nos "pubs", o teatro em que estrelavam Sarah Bernhardt e Eleonora Duse, o nascimento da imprensa moderna. Era o tempo de H.G. Wells e Dickens, Oscar Wilde e Shaw, só para citar os ainda hoje famosos. Será que não caberia perguntar se tal elenco de artistas e intelectuais só aparece em sociedades "duais"?
A Berlim descrita no outro volume também é mostrada em todas as suas contradições, com destaque para a social. Os bairros miseráveis, no final do livro, são alvos fáceis da propaganda nazista. Disso não há dúvida, mas todas as classes sociais, toda a Alemanha, se embeveceram diante de Adolf. O livro não enfrenta isso, como o já citado Taylor enfrentou em seu "Origens da Segunda Guerra Mundial". Novamente aqui o que vale são as pequenas informações e os relatos da vida cultural. Era o tempo de Martin Wagner, Erwin Piscator e Max Reinhardt, da Bauhaus, de Thomas Mann e de Alfred Doeblin, de Fritz Lang, George Grosz e Kurt Weill. Berlim fervia na música popular, nas artes plásticas, na literatura, na arquitetura, no teatro, no jornalismo e no cinema. Como uma cultura com tal dinâmica pode ter dado lugar a uma ideologia provinciana e paralisante, o livro não se pergunta.
Já William Wiser é bem mais sábio. Seu "Os Anos Loucos", sobre a Paris dos anos 20, é o melhor destes cinco livros. É um livro ágil e ousado como seu assunto. Wiser está ciente de que está lidando com uma confluência de gênios como poucas na história. E de que ela está vivendo um momento único, depois de uma guerra (a Primeira) que deixou traumas letais, um momento em que se mesclam o desespero de um mundo que se acaba e a possibilidade, ou mero vislumbre, de criar um novo mundo. O mundo que se acabava era o mundo da "honra, cortesia e coragem" para uns (como Scott Fitzgerald, que tratou disso magnificamente em "Terna É a Noite"), o mundo que começava apontava um futuro eletrizante para outros (como os futuristas, que exaltavam a velocidade e a teconologia). Por sinal, de tal dualidade nasceu e morreu o modernismo.
O fascinante na Paris descrita por Wiser não é só o jazz, o cubismo ou as ousadias sexuais, a "festa móvel". É também a vida cosmopolita, que Berlim não teve igual. Ali moravam, criavam e brigavam os espanhóis Pablo Picasso e Joan Miró, o mexicano Diego Rivera, os americanos Edmund Wilson, Ezra Pound, Ernest Hemingway e Scott Fitzgerald, o irlandês James Joyce, os franceses Gertrude Stein, Henri Matisse e Marcel Duchamp, o francês Francis Picabia, o italiano Amedeo Modigliani, os russos Igor Stravinski e Sergei Diaghilev, o inglês Ford Madox Ford, o suíço Paul Klee –e muitos outros. Pululavam "salons", revistas e "coquettes". Vicejavam todas as formas de arte, da dança à fotografia, da alta costura à poesia.
Se falta a análise sociológica e econômica, o livro de Wiser tem a inteligência de saber que por meio dos relatos de grandes personalidades é mais certeiro definir o que era viver naquela cidade naquele momento. Em suma, ele faz o leitor se sentir no meio daquele torvelinho. Além disso, não faz apenas uma ode àquele período (e quem não se maravilha com ele desistiu da vida), mas também mostra as dificuldades que se viviam lá –em especial, os preços do aluguel e da comida.
Não é por menos que falamos na Paris dos anos 20, ou na Berlim dos anos 20, ou na Londres dos 1890, ou na Florença do Renascimento, ou mesmo na Nova York dos anos 50. São cidades e tempos que se notorizaram por sua vida cultural efervescente, por sua reunião de talentos artísticos, que preenchiam o espaço público com seu charme e inteligência. Sem eles não há a genuína "urbanidade". Se pensamos no grupo de Bloomsbury, verificamos que ele não teve a mesma marca, que as obras de seus componentes estão abaixo de suas qualidades pessoais (com raras exceções), porque ele não ocupou uma cidade, não revolucionou a vida de uma cidade.
O livro de Quentin Bell sem querer deixa transparecer isso. Bloomsbury nasceu em Cambridge, numa cidade universitária, de vida calma e sem "dualidades" chocantes. O grupo reunia escritores como E.M. Forster e Virginia Woolf, intelectuais como Roger Fry, Desmond McCarthy, Lytton Strachey, Clive Bell e Leonard Woolf, pintores como Duncan Grant e Vanessa Bell. Eles se traíam adoidado e viviam intensamente. Eram influentes na cultura de seu país. Em torno deles orbitavam intelectos como Bertrand Russell e Maynard Keynes. Produziram livros que ninguém culto desconhece (muitos jamais traduzidos no Brasil...). Mas não mudaram o mundo como os outros grupos.
O livro de Renato Cordeiro Gomes poderia ajudar a explicar isso, não fosse uma colcha de retalhos eruditos. Seu melhor momento é quando fala do Rio dos anos 40, tão cantado em prosa por Rubem Braga, Pedro Nava e Marques Rebelo. Foi outro dos momentos históricos em que sensibilidades sofisticadas buscaram e insuflaram vida numa cidade. Momentos que já não se repetirão hoje, nesta era supostamente "democrática", quando pessoas de tal estirpe estão ilhadas em casa diante de seu "home theater".

AS OBRAS
Os Anos Loucos, de William Wiser. Capa de Joatan. Tradução de Leonardo Fróes. José Olympio (r. Marquês de Olinda, 12, Rio de Janeiro, tel. 021- 551-0642). 251 págs. CR$ 9.816

Bloomsbury - a história do grupo de intelectuais que revolucionou as letras e as artes, de Quentin Bell. Tradução de Suely Cavendish. Ediouro (r. Nova Jerusalém, 345, RJ, CEP 21042-230, tel. 021 260-6122). CR$ 4.546

Londres, 1851-1901 - a era vitoriana ou o triunfo das desigualdades, org. de Monica Charlot e Roland Marx. Coleção Memória das Cidades. Tradução de Lucy Magalhães. Jorge Zahar Editor (r. México, 31 - sobreloja, Rio de Janeiro, tel. 021 240-0226, fax 021 262-5123, CEP 20031-144). 191 págs. CR$ 11.600

Berlim, 1919-1933 - a encarnação extrema da modernidade, org. de Lionel Richard. Coleção Memória das Cidades. Tradução de Lucy Magalhães. Jorge Zahar Editor (r. México, 31 - sobreloja, Rio de Janeiro, tel. 021 240-0226, fax 021 021 262-5123, CEP 20031-144). 211 págs. CR$ 11.600

Todas as Cidades, a Cidade, de Renato Cordeiro Gomes. Prefácio de Eneida Maria de Souza. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, 5.º andar, Rio de Janeiro, CEP 2011-040, tel. 021 507-2000, fax 021 507-2244). 13 págs. Preço não definido

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