São Paulo, domingo, 6 de fevereiro de 1994
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Reflexões sobre a corrupção

HÉLIO BICUDO

A corrupção, como uma consequência perversa no exercício do poder, não é uma marca nacional e nem pode ser considerada uma qualificação dos tempos atuais. O livro do Gênesis mostra, talvez, o primeiro ato de corrupção, quando a serpente convence Adão e Eva a comerem do fruto do bem e do mal.
A história dos povos retrata, a cada passo, como a corrupção está presente, sobretudo, naqueles que têm em suas mãos as rédeas dos governos. O padre Antônio Vieira, no célebre sermão do "bom ladrão", proferido na Igreja da Misericórdia em Lisboa (Portugal), pontuava contra aqueles que, exercendo o poder, roubavam o povo e, ao contrário da punição que recaía violenta contra os pequenos ladrões, eram exaltados porque roubavam muito.
Fatos recentes ocorridos no Japão, na Espanha e na Itália –onde deu ensejo à chamada operação "Mãos Limpas"– mostram que, se a corrupção persiste, somente práticas democráticas transparentes permitem, senão a sua eliminação, pelo menos a sua redução a níveis, no mínimo, mais suportáveis.
Com isso queremos dizer que, no Brasil, a partir do processo de impeachment do ex-presidente Fernando Collor, teve início um processo da maior importância para o desenvolvimento sadio do país e que busca estabelecer princípios morais e éticos nas relações Estado-sociedade, permeando ambas.
Esse processo prosseguiu na recente CPI do Orçamento, desvendando aos olhos do público aquilo de que as elites já estavam conscientes e talvez coniventes: a partilha do dinheiro público entre determinados grupos aliados aos que detêm as chaves do tesouro, locupletando-se todos eles às custas dos sacrifícios do povo.
No quadro atual, parece evidente que corruptores e corrompidos confundem-se uns com outros. Um empresário busca corromper aqueles que têm o poder, mas também pode ser corrompido por estes últimos. Não se trata de uma via de mão única, atribuindo-se, por exemplo, às empresas toda a corrupção.
Muitos daqueles que têm o poder de decisão impõem as "regras do jogo" e estipulam os níveis das comissões. Isto se faz dentro de uma composição, onde é difícil distinguir corruptor e corrompido. O sujeito ativo da corrupção de hoje pode ser o sujeito passivo de amanhã e vice-versa.
Assim sendo, o problema das empresas não pode e não deve ser posto segundo uma idéia unilateral de que só elas corrompem. No cumprimento de suas funções, se bem cumpridas, interessam ao processo equilibrado do desenvolvimento nacional.
A questão maior é a de canalizar essas atividades para um novo patamar ético, porque é inegável, por exemplo, que a indústria da construção civil no país já atingiu níveis tecnológicos que em nada ficam a dever aos dos países do Primeiro Mundo, e chegam a estar presentes na disputa do mercado internacional.
Isto sem preconceitos moralistas apegados ao maniqueísmo entre o bem o mal, pois se consideramos que o mal é a nossa empresa prestadora de serviços, vamos entregar, nessa área, às construtoras internacionais mais uma fatia de nossa economia, reduzindo nossas atividades no setor a simples agentes de mão-de-obra.
É claro que se impõe a edição de novas normas para criarmos os fundamentos de uma relação ética entre sociedade e Estado, muito mais importante que o estabelecimento de comitês de salvação pública, com a exposição de cabeças que, se hoje devem rolar, continuarão elas a rolarem "ad infinitum" se não encontrarmos o traçado que irá permitir a modelagem de um pacto capaz de organizar a sociedade em torno de um ideal comum, onde a solidariedade se sobreponha ao objetivo do lucro fácil e do enriquecimento ilícito. E onde, sobretudo, deve prevalecer a consciência de que as verbas orçamentárias são públicas e devem ser gastas no exclusivo interesse do povo.

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