São Paulo, quarta-feira, 9 de fevereiro de 1994
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Destino de brasileiros é confiar na sorte

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O movimento nas casas lotéricas cresceu enormemente com a notícia de que o prêmio da Sena estava acumulado. Tiveram de adiar a divulgação dos ganhadores, dada a dificuldade em processar o número de apostas feitas.
O fenômeno acontece de vez em quando, e até certo ponto é natural. Claro que, com um prêmio gigantesco, mais pessoas se dispõem a apostar.
Eu mesmo me senti tentado fa zer um jogo. Puxa, a Sena está acumulada. Vou jogar. Do ponto de vista lógico, entretanto, essa atitude é bem curiosa.
Pois qualquer prêmio da Sena –acumulada ou não– é tentador. No fim das contas, qual a diferença entre ganhar 1 bilhão, meio bilhão, trezentos milhões ou os quase três bilhões que a Caixa Econômica prometeu nesta semana?
Qualquer quantia seria bem-vinda. Os sonhos propostos por uma Sena "normal" não diferem muito dos da Sena acumulada. Ganhar sempre é bom.
Mas há pessoas que só apostam quando a Sena está acumulada. Quase fiz isso. É como se o prêmio "normal" fosse uma ninharia, e não nos devesse incomodar. Já o prêmio "acumulado" faz valer a pena uma fezinha.
O mecanismo é psicológico. Nossas chances são as mesmas, ou piores; o prêmio sempre é ótimo de qualquer jeito. Mas, quando a Sena acumula, tudo parece orientar-se rumo a uma grande vitória; a algo excepcional, a um lance de sorte jamais visto.
Parece que, de propósito, a Sena acumulou-se para nós; uma intencionalidade benfazeja se intui no acaso numérico. Ganhar uma Sena qualquer é fato banal, e ao mesmo tempo inacessível. Ganhar a Sena acumulada é ter cumplicidade com os deuses, é ter atendido a um apelo, é sonhar de algum modo, que o acaso conspira a meu favor.
Pura imaginação, evidentemente. Mas o fenômeno da Sena acumulada diz muito a respeito do Brasil.
Promoções
Nunca foi tão intensa a moda dos sorteios. Você entra num posto de gasolina e concorre a um Gol zerinho. Os shopping-centers, no Natal, prometeram mundos e fundos. Supermercados inventam raspadinhas. Tudo é prêmio, concurso, promoção.
Arrisco algumas explicações para esse fato.
A primeira é que o mundo Silvio Santos –carnês do baú, porta da felicidade– tende a expandir-se. Não incide mais apenas sobre a clientela proletária das empregadas domésticas; passa para a classe média dos shoppings, já proletarizada ela própria.
Entre parênteses, noto o anacronismo de Silvio Santos. Ele provém de uma época em que o "Baú da Felicidade" substituía o jogo do bicho, atualmente liberado na prática. Seu programa dirige-se até hoje a um público de empregadas domésticas: a parte do proletariado que, nos anos 70, ou antes, só tinha acesso à TV pelo fato de morar na casa da patroa.
Hoje, a empregada tem TV dentro de sua própria casa, e a patroa preenche formulários no shopping-center.
Uma coisa interessante nesse gênero de jogos de azar, contudo, é que uma modalidade não substitui a outra. Brizola pode ter oficializado o jogo do bicho com uma espécie de loteria estadual zoológica; o jogo do bicho continuará. O carnê do Baú não é ameaçado pela Tele-Sena, a Loteria Esportiva não acabou com a Loto. As esperanças, por definição, são infinitas.
Inflação
Outro motivo para a atual febre de jogos de azar e para as "promoções" comerciais é o fenômeno da desvalorização da moeda. Vários aspectos merecem ser comentados.
Como o dinheiro vale pouco, apostar mil, dez mil cruzeiros na Sena não é sangria desatada. Tudo bem, você perdeu, Mas perde tanto com a inflação, que a coisa não é tão grave assim.
Depois, como saber se comprar no shopping-center A, que promete carros importados, é melhor do que comprar no shopping center B, mais caro, mas que promete viagens a Aruba?
O cálculo econômico –comprar sempre ao melhor preço– se embaralha num ambiente onde os preços, os valores monetários, estão em completa turbulência. Ninguém sabe qual é o "preço real" de coisa alguma. Contra ofertas, contra preços velhos, ou prudência na remarcação, surgem prêmios, concursos, promoções. Apostar, confiar na sorte, vira confiança num acaso menos misterioso do que o acaso diabótico que rege as leis da economia.
Destino
O problema é mais estrutural do que parece. Os brasileiros estão confrontados com uma situação crônica de crise inflacionária, de incompetência governamental, de impasse.
A idéia do "não vai dar certo" nos assalta desde o Plano Cruzado. Os tropeços do plano FHC derivam, em grande parte, da desconfiança geral quanto às promessas que ele encerra.
Há mais ou menos uma década vivemos o clima de "après moi, le déluge", depois de mim, o dilúvio, e é isto o que Fernando Henrique repete, na tradição de Maílson, Zélia, Bresser, Funaro. O dilúvio não vem, tudo continua tão ruim quanto antes, mas um aprendizado se verifica.
É o de que o destino, o destino brasileiro, o destino pessoal, está traçado inexoravelmente para infelicidade de todos nós. Mas quanto mais se acredita na imutabilidade desse destino, mais se acredita na sorte. No ... Na fuga miraculosa, nos lances instantâneos de redenção.
Redenção coletiva são os choques, as URVs, os calotes, as eleições. Não valem as esperanças de redenção individual: a Sena acumulada, as viagens a Aruba, o Gol do posto de gasolina. A idéia de sorte, de .... casual num número, se contrapõe à impressão de mesmice, do beco sem saída, de azar que toma conta do Brasil, país aparentemente destinado ao fracasso.
Destino e sorte são duas entidades imaginárias que se combinam .. ambiente atual. Mesmice e redenção, milagre e penúria, esperança e desespero. Um meio termo pode ser encontrado: chama-se vontade, empenho, mobilização política. Mas tudo se desenvolve como se o futuro não estivesse em nossas mãos; como se o acaso, a sorte ou o destino nos dominassem.
E é por isso que o caso João Alves parece tão revoltante. Ele atribui seu enriquecimento lotérico a "Deus", não às falcatruas da Comissão de Orçamento. Sua atitude é escandalosa, porque contesta, acima de tudo, não aquilo em que nunca acreditamos– a lisura na distribuição de verbas; mas sim porque contesta aquilo em que todos acreditam: a imparcialidade do acaso, a suprema justiça de um sorteio da loteria, a impessoalidade do acaso, a suprema justiça de um sorteio da loteria, a impessoalidade dos números da Sena, a sorte, esse dado não-manipulável, repositório das esperanças que nos restam.

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