São Paulo, quarta-feira, 9 de fevereiro de 1994
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Polanski filma a atração pelo universo kitsch

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

É fácil dizer que um cineasta trabalha os clichês com uma distância cínica. "Lua de Fel", de Roman Polanski, é o tipo de filme que permite esse gênero de comentário tão frequente na crítica de obras classificadas de "pós-modernas". A originalidade deste filme, porém, está exatamente na ambiguidade com que se "distancia" desses clichês.
Há uma sinceridade em Polanski ao tratar do que despreza. Uma certa humildade. É um diretor que conhece o prazer sob a repulsão, sabe que, sob a repulsão, pode estar escondida uma atração incontrolável. Daí o interesse de um filme como "Lua de Fel", baseado num romance de segundo escalão.
Polanski usa o livro de Pascal Bruckner, a história de um casal que é enredado numa trama de perversões por um outro casal durante um cruzeiro rumo a Istambul, para reafirmar um mecanismo que perpassa não apenas seus filmes como sua própria biografia. Nigel, o convencional marido inglês, ouve da boca de um escritor americano frustrado e aleijado a história de seu encontro com a francesa Mimi e das perversões que se sucederam entre os dois, terminando por deixá-lo numa cadeira de rodas.
Embora acreditando estar apaixonado por Mimi, o jovem inglês está na realidade apaixonado pela narrativa do americano, e é capaz de abandonar a mulher a qualquer momento do dia ou da noite para continuar a ouvi-la dentro de uma obsessão masoquista. Ao filmar as perversões em tom de farsa, na ambiguidade do falso, oscilando entre momentos de evidente ironia e outros de estranha credulidade, Polanski cria um jogo de afastamento e proximidade simultâneos.
O curioso não é o sarcasmo do cineasta, o desprezo por essa gente (tanto o casal convencional como o caricaturalmente perverso ou os típicos frequentadores de cruzeiros marítimos), mas o prazer que revela pelo que aparentemente despreza. A duplicidade que faz com que o grotesco e o kitsch possam atrair de uma forma irresistível.
O que Polanski tem a humildade e a coragem de mostrar é que, no fundo, por alguma razão que não se explica em sã consciência, o desprezível e o vulgar atraem. Não é portanto um filme sobre a paixão, a paixão alucinada, mas sobre o sexo em estado bruto, sobre a atração pelo que não tem sentimento, é só pulsão, sobre a pornografia (as publicidades sobre sexo por telefone são recorrentes ao fundo da imagem), sobre o que não obedece a regras ou limites do bom gosto. A força de "Lua de Fel", considerado um filme menor do cineasta, está na alegoria dessa duplicidade, em tratar da atração pelo que envergonha, a sedução do ridículo.

Vídeo: Lua de Fel
Diretor: Roman Polanski
Elenco: Emmanuelle Seigner e Peter Coyote
Distribuidora: Paris Vídeo Filmes

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