São Paulo, quarta-feira, 9 de fevereiro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Bressane vai rejuntar turma do Mario Reis

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

"O mandarim manda ou não manda?", perguntava o Chacrinha, comandando a massa. O mandarim manda. Ou melhor, catalisa. O mandarim, no caso, é um cantor. Não um cantor qualquer, mas Mário Reis (1907-1980), o João Gilberto da aurora do samba, o catalisador da maior plêiade de gênios que a arte musical brasileira já produziu. É só começar a enfileirar: Sinhô, Noel Rosa, Lamartine Babo, Ismael Silva, Carmen Miranda, Aracy de Almeida, Marília Batista etc –sem esquecer seu companheiro de dupla, Francisco Alves.
"Isso dá um filme", pensou Julio Bressane. E não é que vai dar? Já tem até título: "O Mandarim", claro. E um elenco "all star", como convém do ponto de vista estético, conceitual e comercial. Sem Chico Buarque no papel de Noel Rosa, Gilberto Gil no de Sinhô, Paulinho da Viola no de Ismael Silva, Gal Costa no de Carmen Miranda, Maria Bethânia no de Aracy de Almeida (misto de Marília Batista) e Tom Jobim no de Villa-Lobos, "O Mandarim" não teria o sentido nem o financiamento almejados pelo cineasta carioca. A quem, aliás, devemos um dos mais curiosos encontros culturais do nosso imaginário: em "Tabu", o rei do carnaval (Lamartine, encarnado por Caetano Veloso) encontrava-se com o rei do mundanismo (João do Rio, interpretado por José Lewgoy) e o rei do modernismo (Oswald de Andrade, vivido por Cole).
"Haute Gomme"
Novo "Tabu" à vista? Sim e não. Não porque Mário Reis de fato conviveu com os demais citados –inclusive Villa-Lobos, que, acredite, era fã dele. Homem fino, chique, da "haute gomme", como então se dizia, Mário fazia seus ternos no mesmo alfaiate, Gargaglione, que cortava as casacas do maestro. Imagine o Tom provando uma casaca, num antigo sobrado do centro do Rio, saindo depois para flanar (e falar de chorinhos) com Mário pelo Arco do Teles e arredores. Esta é uma das cenas do roteiro, praticamente pronto, de "O Mandarim".
Para incorporar o espírito e o estilo de cantar do mais grã-fino e "cultivé" cantor que o Brasil já teve, alguém que há algum tempo os adotou em shows e recitais cariocas: Fernando Eiras. "É um rapaz de muita sensibilidade, profundo conhecedor da obra do Mário e, o que é mais importante, com bastante intimidade com a turma da velha guarda do samba por ser filho do radialista Haroldo Eiras", diz Bressane.
Garção e jardineiro
Ele próprio íntimo de Mário nos últimos 18 anos de sua vida, Bressane iniciou "O Mandarim" como uma pesquisa histórico-musical, financiada por uma bolsa da Fundação Vitae. Leu tudo que sobre o cantor se escreveu e tambem biografias de seus contemporâneos, reouviu todas as suas 157 gravações, entrevistou seus companheiros de música, boemia e alta sociedade ("os melhores testemunhos eu colhi junto aos mais humildes, como o garção do antigo Jóquei Clube e o jardineiro do Country Club"), mas pretende valer-se sobretudo das historias que Mario lhe contou.
Por exemplo, as do frango ao molho pardo. Às custas desta glória da culinaria nativa, Mário nao só conquistou Sinhô –que especialmente para as suas modestas cordais vocais compôs vários clássicos, entre os quais "Jura"–, mas também induziu Noel Rosa e Lamartine Babo a uma inesperada parceria. Com o frango a caminho da mesa, Lalá soltou os primeiros versos de um novo samba, "O Sol Nasceu Pra Todos", completados no ato por Noel.
Figura Solar
Com o sol raiando Mário chegava ao Country Club do Rio, de onde só saía quando o sol se punha. "Era uma figura solar, cuja arte irradiava alegria, um sujeito que cantava sorrindo", lembra Bressane. "Mas que, paradoxalmente, tinha o seu lado lunar, sombrio, noturno. Consta que ele se apaixonou por uma garota, ela morreu, e ele nunca mais amou ninguem. Veja só: atrás de toda aquela alegria havia um coração insepulto, uma tristeza contida e uma energia amorosa represada– e tudo isso ele extravasou na musica".
Coxas maravilhosas
E agora, uma revelação: Mário morreu virgem. Como Kant, sir Isaac Newton e John Ruskin. "Ele não dava bola pra sexo", revela Bressane. "A única vez que eu o ouvi falar de alguém com luxúria foi de Carmen Miranda, das coxas maravilhosas da Carmen". Gal, portanto, foi uma escolha judiciosa.
As demais também, considerando-se o que o cineasta ambiciona: sobrepor signos populares de épocas diferentes, raízes e ramificações, formadores e herdeiros, sensibilidades que se imbricam. Nada de semelhanças rígidas ou influências direcionadas. Analogias, sim. Já não chamaram Chico de "o novo Noel"? E o Tom, nao é mesmo o nosso maestro numero um? E é obvio que há mais coisas entre Sinhô e Gil do que supõe a vã semiologia.
Céu azul
A dois modelos de cinebiografia "O Mandarim" ficará devendo a sua pluriangular estrutura narrativa: "Cidadão Kane", de Orson Welles, e "A Condessa Descalça", de Joseph L. Mankiewicz. Apontando para uma soberba e verdejante rocha no alto do Leblon, zona sul do Rio, Bressane revela mais um segredo: "Ali vou fazer um bocado de externas, aproveitando o céu, luxuriantemente azul que nem o dos westerns de Anthony Mann". O sol nasceu para todos, mas para Anthony Mann nasceu mais azul.

Texto Anterior: Arrabiatta; Cartilha; Comboio
Próximo Texto: Ministério cria novo incentivo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.