São Paulo, quarta-feira, 9 de fevereiro de 1994
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'3.ª Margem' mescla poesia e fantástico

JOSÉ GERALDO COUTO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

"A Terceira Margem do Rio", de Nelson Pereira dos Santos –exibido em pré-estréia no Rio de Janeiro, anteontem–, poderia ser uma obra-prima, mas muito de seu encanto se dilui no meio do caminho, e o que era pura poesia vira uma espécie de hiperrealismo fantástico que passa às vezes perto do ridículo. Mesmo irregular, contudo, é um belíssimo filme.
O roteiro de Nelson Pereira é enxuto e engenhoso. A partir do conto de Guimarães Rosa que dá título ao filme –o drama silencioso de um homem que abandona a família para viver num barco, no meio do rio–, vão-se entrelaçando outras quatro das "Primeiras Estórias" do escritor mineiro.
Liojorge (Ilya São Paulo), o filho do misterioso barqueiro de "A Terceira Margem", persegue uma vaca extraviada, tornando-se o protagonista do conto "Sequência" e casando com "a mulher mais linda do mundo" (Sonja Saurin). Do amor dos dois nasce a pequena milagreira Nhinhinha (Barbara Brandt), "A Menina de Lá", mas a família é perseguida pelos mal-encarados "Irmãos Dagobé". Para livrar-se deles, Liojorge recorre ao matador-filósofo de "Fatalidade" (Jofre Soares).
O filme é de uma beleza arrebatadora enquanto se mantém próximo ao universo rural de Rosa. Numa paisagem belíssima –o rio envolto em brumas, nas proximidades de Paracatu (MG)–, com poucos personagens e escassos diálogos, conjugam-se economia narrativa e alta densidade poética (reforçada pela música de Milton Nascimento). As elipses são perfeitas, as notações da passagem do tempo são simples e precisas (o filho levando comida para o pai, na beira do rio, a cada vez com um aspecto diferente).
Mas, no mesmo momento em que o mundo unitário e harmonioso dessa família sertaneja começa a rachar, com a entrada em cena dos irmãos Dagobé, também o filme perde sua unidade estética, embora mantendo o fio narrativo. É óbvia –e legítima– a intenção do cineasta de colocar na tela o Brasil de hoje, feio, sujo e cheio de arestas em comparação com o universo moral e mítico de Rosa.
O problema é que, a partir da migração da família de Liojorge para a periferia de Brasília, não só a feiúra do Brasil real entra por todos os lados, mas um novo tratamento estético e dramático é adotado pelo diretor. Os milagres de Nhinhinha viram mágicas extravagantes à maneira de García Márquez: bombons saltam da tela da TV para o colo dos espectadores, uma escola de samba surge do nada... Mesmo que ainda haja passagens inspiradas –como a sequência com Jofre Soares–, a poesia de Rosa só vai reaparecer mesmo na última cena.
São claros, aqui e ali, os ecos de "Vidas Secas" (em que estrearam Maria Ribeiro e Jofre Soares), "O Amuleto de Ogum" e "Memórias do Cárcere". Com sua grandeza irregular, "A Terceira Margem" é uma síntese da obra de Nelson Pereira dos Santos.

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