São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 1994
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Macalé quer quebrar vodu de 'maldito'

CARLOS CALADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Há duas décadas ele vem enfrentando, com a irreverência e o bom humor de sempre, seu estigma de "maldito" da MPB. Porém, o cantor e compositor Jards Macalé começa 94 com a disposição de quebrar de vez a maldição que o afastou do grande público.
Após o Carnaval, chega às lojas "Let's Play That", CD com gravação inédita há 10 anos, que flagra a vibrante parceria de Macalé com o percussionista Naná Vasconcelos. Recém-chegado de Nova York, o compositor também recebeu o apoio da ONU para a reedição do polêmico "Banquete dos Mendigos", disco censurado durante o regime militar, nos anos 70 (leia textos nesta página).
"Espero que isso facilite meus pagamentos de aluguel, luz e telefone", ironiza Macalé, frente à possibilidade de sua música ser apreciada pela nova geração, que não conhece seus discos. Provocando as platéias de festivais com performances debochadas, ou chocando setores de esquerda ao se encontrar com o general Golberi do Couto e Silva (em 79), Macalé fez da rebeldia sua marca.
Em São Paulo, para a pré-estréia do novo filme de seu amigo Nelson Pereira dos Santos, Macalé lembrou como se tornou maldito e falou de sua relação com as gravadoras. Explicou também seu rompimento com Gilberto Gil e Caetano Veloso.
*
Folha - Quando você foi tachado de "maldito" pela primeira vez?
Jards Macalé - Nem me lembro direito. Acho que veio a partir de "Gotham City", que eu fiz para o Festival Internacional da Canção de 69. Enquanto eu toquei caixa de fósforo com Nora Ney, Nelson Cavaquinho e Cyro Monteiro, ou compunha com Vinicius de Moraes, eu não era maldito. "Gotham City" era uma provocação e eu fui amaldiçoado no Maracanãzinho. Parecia uma arena: todos com o dedo para baixo. Eu e Capinam quase fomos presos no palco, cercado pela polícia.
Folha - Mas quem inventou o termo "maldito"?
Macalé - Foi coisa de gravadora. Para me venderem, assim como ao Jorge Mautner, inventaram isso. Só que não deu certo e funcionou de modo inverso.
Folha - Virou um vodu...
Macalé - É, um vodu. Eu fui amaldiçoado, mas também me aproveitei disso para falar o que eu sempre quis. Como eu não tinha o rabo preso com ninguém, eu escancarei. Mas, agora, eu vejo que há a mão e a contramão da história. No fundo, a gente seguiu a contramão e acabou abrindo uma via fantástica: a da liberdade. Isso foi conseguido a duras penas, como toda liberdade.
Folha - Dá para sobreviver sem uma gravadora?
Macalé - Não acho que seja fundamental, principalmente no mundo de hoje. Na casa em que eu fiquei, em Nova York, a TV tinha 77 canais. Qualquer um pode alugar um canal e fazer sua produção. Lá há milhões de selos. Tem mercado para todo mundo. Não é esse afunilamento do Brasil, que até pode mudar com selos como o Velas. É preciso acabar com esse centralismo, que mata tudo que é vital. Eu, Mautner, Melodia, Tim Maia, fomos muito prejudicados. Como nós, Jorge Benjor é um sobrevivente. E estamos muito bem de saúde.
Folha - Você trabalhou bastante com Caetano Veloso e Gilberto Gil, no início dos anos 70. Por que rompeu com eles?
Macalé - Toquei violão, fiz arranjos e a direção musical do LP "Transa", de Caetano, durante nosso exílio em Londres. O próprio Caetano acha que esse é o melhor disco dele. Quando o disco chegou à minha mão, não tinha crédito para mim, nem para os músicos. Eu já dei crédito até para a cachorrinha do Júlio Medaglia, em meu LP "Contrastes". Crédito é mercado de trabalho, é direito autoral.
Folha - Mas seu crédito não foi reconhecido?
Macalé - Meses depois colocaram um papelucho na segunda ou terceira edição. Fiquei puto com isso. É um desrespeito. A segunda coisa, com cada um deles, é o sentido que os dois resolveram dar ao barato deles. Gil é um grande músico. Caetano é um grande letrista. Mas dizer que eles são grandes pensadores é cascata. Essa coisa de eles olharem só para os seus umbigos atrapalha todo mundo. E a mim já atrapalhou o suficiente. Além disso, eu discordo da maioria das posições políticas dos dois. Não é uma briga pessoal. É outra coisa. Agora, quando chegam na música, eles arrasam. Aí são grandes e grandiosos. Hoje, é cada um na sua. Eu respeito, mas assim como Caetano tem direito a seus chiliques e de criticar tudo, acho que também tenho o direito de criticá-lo. É democracia ou não é?
Folha - Por que seus discos antigos ainda não foram reeditados em CD?
Macalé - Como as gravadoras não demonstraram interesse, eu mesmo tentei produzir uma edição, mas elas não soltam os fonogramas. Não fodem nem saem de cima. Claro que há um motivo: eu fui um dos que mais ativaram a questão de direitos autorais no país. É pena que as gravadoras não tenham consciência, nem o respeito que deveriam ter pelo artista brasileiro, já que vivem do trabalho desses artistas. Na realidade, quem está perdendo são elas e o público, porque eu continuo.

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