São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 1994
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Vocação de brasileiro é viver sob dilemas

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Nós somos, cada dia mais, o país dos dilemas. Nenhuma construção da lógica nos atrai mais que essa, que parece liquidar o ato de pensar longamente, de ruminar conceitos e só então buscar conclusões. O dilema reduz o raciocínio a machadadas: ou bem isto ou bem aquilo, "either/or". E nosso amor ao dilema não se entronca em qualquer preocupação maior com a lógica. O que nos encanta é o mecanismo simplificador de longos esforços mentais.
A palavra entrou, como em nenhum outro país, na boca do povo e dos piadistas. De tanto falarmos em dilema, dilema atroz, chegamos à paródia do diadema de retrós. Aliás, o "Aurélio" registra até mesmo o emproado substantivo trilema, que não encontro no meu "Patit Lerousse" nem no "Random House". O dilema de três pontas, feito o ancinho do diabo, é coisa nossa, como diria Noel Rosa, no samba das manias brasileiras.
Eu confesso que, distraído, ou melhor empolgado pelo trabalho de sinistra mineração daquela CPI que mergulhava fundo na nossa corrupção, nem reparei quando entrou em cena a Comissão de Revisão Constitucional. E ela entrou comandada por um trovejante Moisés que brandia nas mãos as tábuas onde inscreveremos a nova Lei. O Moisés é o deputado Nelson Jobim que nos põe cara a cara com o dilema: ou revemos já a Constituição de 1988 ou estaremos liquidados como povo, como nação. Ninguém pode continuar vivo com uma Constituição macróbia como a nossa, velha de nada menos que seis anos.
É bem verdade que outros povos, menos dados às cintilantes simplificações dilemáticas, mais lentos do que nós, chegam a resultados diferentes. A Inglaterra nunca mais precisou ter o trabalho de redigir uma Constituição, depois que fez sua chamada Magna Carta, defendendo as liberdades do povo, no ano de 1215. Chegando mais perto, temos os americanos, que funcionam com a mesma velha máquina constitucional do ano de 1786. Mesmo nossos vizinhos argentinos, um tanto doidivanas e imprevidentes como nós, se defendem desde 1853 com a mesma Constituição.
Para que a Constituição de 1988 pudesse sair alegre e despreocupada, como o talentoso povo que somos, os congressistas-constituintes tocaram antes de mais nada um amplo tapete para baixo do qual varreriam toda e qualquer dúvida mais intransigente. O tapete tomou o nome de Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e tem nada menos que 70 artigos.
O artigo dois sempre me pareceu extraordinário, pois manda que a 7 de setembro de 93 o povo escolha, em plebiscito, que forma de governo deseja, – parlamentarismo ou presidencialismo: como se os exaustivos labores de 1988 tivessem resultado numa espécie de galpão, cabendo aos cidadãos resolverem, em 1993, que estilo de residência desejavam para si mesmos. Os cidadãos resolveram ficar como estavam, impacientes com tanto dilema a resolver todos os dias.
Agora desaba em cima de nós o artigo três: "A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral". Para os maus não há paz, diz e repete o profeta Isaías. Seremos tão ruins assim que as Disposições Transitórias nunca nos dão paz? É verdade que em certos artigos ninguém fala, como no de número 67, que postula, sem rir: "A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição".
E outros dilemas vão brotando da terra: o presidente da República continua nos governando durante cinco anos ou volta, como ao tempo da República Velha, aos quatro anos? Teremos ainda um vice-presidente, ou, para nos vingarmos dos que já tivemos, vamos exterminá-los para sempre, na onda da revisão constitucional?
Terra da promissão
O deputado Nelson Jobim tem o título de relator-geral da Revisão Constitucional e leva sua função profundamente a sério, o que eu acho muito bom. Fala com convicção no trabalho de que foi incumbido e usa um português fluente e correto, o que é pouco comum no Congresso. Não tenho, por outras palavras, nenhuma prevenção contra ele. Imagino mesmo que, no íntimo, o deputado Jobim morre de pena, como eu, do povo brasileiro, a caminhar sem rumo neste campo semeado de dilemas que ameaçam explodir debaixo do pé da gente.
Vivemos no deserto, em busca da Terra da Promissão, mas não nos deixam sequer andar em silêncio, poupando fôlego e água. O tempo todo temos que resolver: a pé ou a cavalo? Água da bica ou do filtro? Sapato ou sandália? A gente acaba desconfiando que o que querem é sempre alongar a viagem, o caminho, para que, quando afinal chegarmos, já estejam ocupadas as prometidas terras, onde os rios que correm são de leite e de mel.
O dilema que se apresenta então é: vem ou não vem a reforma agrária? Ela virá, é claro, como virá a demarcação das terras indígenas, mas que importância tem isso diante do plebiscito, que tivemos dia 7 de setembro do ano passado, ou da revisão, impreterível depois de cinco anos da promulgação da Constituição? Esses são os dilemas clássicos, abstratos, que não têm nada a ver com a vulgaridade da busca de terra ou de pão.
A cebola de Ibsen
Meditava eu, um tanto melancólico, acerca dos dilemas, constitucionais ou não, em que nos consumimos, e procurava para exprimi-los uma imagem viva, quando de repente me veio à mente a cebola de Ibsen. Estou falando no Ibsen original, norueguês, Henrik Ibsen, dramaturgo que escreveu "Peer Gynt".
Creio que assisti à melhor montagem de "Peer Gynt" que jamais se fez. Foi durante a guerra, em Londres, e a companhia do Old Vic era formada de astros tão cintilantes e ao mesmo tempo tão profissionais que aceitavam, à medida que se sucediam as peças do repertório, qualquer papel, fosse ele o principal ou o de criado com a bandeja.
No "Peer Gynt" que vi, o grande e devasso Peer era Ralph Richardson enquanto a ponta do fabricante de botões era o trabalho de Laurence Olivier. Se há na peça uma cena tragicômica é aquela em que Peer se vê retratado a si mesmo numa cebola. Pega a cebola e, para nela se encontrar, põe-se a descascá-la, folha a folha, e, naturalmente, quando despe a cebola de sua última capa, vê que não tem mais nada na mão. Não há nenhum núcleo, âmago, caroço. A natureza é uma gozadora, exclama Peer, indignado, ao ver que é composto de invólucros que não envolvem nada.
Desde aquele dilema que foi nossa pedra fundamental –Independência ou Morte– e que desaguou em nossa primeira Constituição, a de 1824, não temos feito outra coisa senão nos descascarmos a nós mesmos em busca de um núcleo sólido. Essa tem sido a nossa história.

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