São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 1994
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Os mercadores da saúde

IVAN MOURA FÉ

A resolução 1.401 do Conselho Federal de Medicina, ao obrigar os convênios médicos a atenderem todas as doenças, invoca concepções abrangentes e humanistas. A medicina está umbilicalmente vinculada à vida e o médico tem o dever de lutar pela vida alheia, sendo dignamente remunerado e reconhecido pelo seu trabalho.
A saúde brasileira vive momentos difíceis. O Sistema Único de Saúde, um mecanismo justo e equilibrado na teoria, ainda não funciona na prática. Há 32 milhões de pessoas atendidas pelos convênios médicos (fechados e abertos); os outros 100 milhões dependem exclusivamente da assistência pública. Mas ainda é no serviço público deficiente que o doente grave é atendido, tenha convênio ou não.
Os convênios privados não revelam, mas a imensa maioria dos seus segurados, quando sofre um problema mais sério de saúde, acaba sendo atendida no hospital público. E, mesmo com toda a saúde financeira que alardeiam, nunca cogitaram de, honestamente, ressarcir os gastos públicos com seus segurados.
Pelo que diz a sua milionária propaganda, os convênios médicos privados são modernos, detêm alta tecnologia, demonstram invejável saúde financeira e têm um atendimento de alta qualidade. Na prática, cobram exorbitância, excluem todas as doenças de tratamento caro, negam os exames mais sofisticados, têm filas e nunca exibem planilhas de custo. Não cobrem doenças infecciosas, crônico-degenerativas, preexistentes, psiquiátricas, órteses e próteses, transplantes, exames mais modernos –mas nos contratos isto é escamoteado em letrinhas microscópicas, incompreensíveis ao cliente ingênuo.
Têm helicóptero (que às vezes é mentiroso, como aconteceu há dias em Itaparica, e, na grande maioria dos casos, é irrelevante), mas negam atendimento a um caso de dengue. O usuário acha que, por ter um plano de saúde, está garantido. Quando adoece, recebe duas péssimas notícias: a primeira é que está muito mal; a segunda é que vai ter de pagar o tratamento, apesar da bagatela paga em mensalidades, anos a fio.
Os convênios omitem, mas pagam médicos, hospitais e laboratórios com prazos extremamente elásticos –em alguns casos, quase como o SUS que eles tanto criticam. Numa economia inflacionada, tal elasticidade equivale a um ganho real para eles e a uma perda real dramática para os médicos.
O mais grave, porém, é que saúde não pode ser tratada parcialmente: não se cuida do baço sem considerar o estômago. Não se pode tirar um paciente em coma da UTI, no meio da noite, e dizer-lhe pateticamente que vá embora porque o convênio não cobre Aids ou porque seu prazo na UTI esgotou-se. Ele não vai. Não pode ir. Não é justo que vá.
A sociedade deve, pois, mobilizar-se para resgatar seus legítimos direitos. Não existe "meia saúde", nem "meia doença"; saúde é integral. Imagino que os mercadores da saúde nunca conseguirão entender isto. Os médicos, no entanto, entendem. Afinal, não foram treinados para lucrar a qualquer custo; foram preparados para salvar vidas humanas.

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