São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 1994
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Uma história sem heróis

JUNIA NOGUEIRA DE SÁ

Até a noite de sexta-feira, 16 leitores manifestaram sua opinião sobre o episódio que, em meu arquivo, ganhou o nome de "caso Unicamp". Esses leitores escreveram cartas (11) ou telefonaram (cinco) para protestar contra o fato de que a Folha assumiu um compromisso por escrito com a universidade de só publicar a lista de aprovados no vestibular na edição de domingo, 6 de fevereiro, mas acabou rompendo o acordo e publicou a relação no dia 5. Com isso, o jornal "furou" outros quatro, incluindo aí seu concorrente direto, "O Estado de S.Paulo".
Para todos os 16 leitores, a Folha teve um comportamento antiético, irresponsável, prepotente, oportunista -os adjetivos que mais apareceram nas cartas e telefonemas. Sem exceção, eles citaram a Nota da Redação publicada no Painel do Leitor de segunda-feira, 7 de fevereiro, debaixo da carta assinada por Jocimar Archangelo, coordenador da Comissão de Vestibular da Unicamp.
Archangelo protestava ele também, e pedia "a pronta manifestação (...) a respeito da interpretação que devemos dar à carta-compromisso assumida pelo jornal Folha de S.Paulo". A resposta a ele na Nota da Redação dizia que, embora a Folha admita "em certos casos" o embargo de informações, um verbete de seu Manual da Redação reza que o jornalista tem obrigação de publicar tudo o que sabe e é do interesse do leitor -e isso justificaria a antecipação da lista. O jornal calou-se sobre a carta-compromisso.
Quem tem razão nessa história? Arrisco dizer que ninguém, a não ser os leitores. E explico: a lista já estava pronta antes de sexta-feira, 4 de fevereiro, quando a Unicamp passou-a aos jornais que pediram para recebê-la, alegando problemas técnicos, e se comprometeram formalmente a segurá-la até o domingo. Com isso, a universidade conseguiu aval em sua política cruel e sistemática de reter as listas de aprovados no vestibular por alguns dias, para a qual nunca apresentou uma justificativa satisfatória. (Caso semelhante ocorreu no exame de 91/92, quando a Folha publicou antecipadamente a lista -a Unicamp protestou mas não havia compromisso por escrito daquela vez).
Os cinco jornais, esta Folha incluída, que assinaram as cartas-compromisso tomaram uma atitude tão discutível quanto a da Unicamp. Ao aceitar enfiar essa lista na gaveta por dois dias, eles contemplaram interesses da universidade e seus próprios. Esqueceram-se dos interesses de 18.676 leitores -vestibulandos, mais seus pais, mães, parentes, amigos e demais leitores que estivessem esperando a notícia. Agiram burocraticamente contemplando ainda suas "razões técnicas" e, em vez de questionar os métodos da Unicamp, antes aceitaram submeter-se a eles. O leitor que esperasse por uma lista pronta enquanto ela dormia nas redações.
É verdade que a Unicamp é uma universidade pública respeitada, suficientemente dona de seu nariz para fazer exames vestibulares com as regras que lhe parecerem mais corretas. Daí decorre que ela pode escolher a data em que vai divulgar o resultado desses exames, mas não pode submeter a imprensa a aceitar suas preferências. Sabendo que a lista estava disponível, os jornais deveriam batalhar por sua divulgação, em nome do direito de seus leitores à informação, mas nunca aceitar seu embargo.
Em vez disso, a Folha acatou primeiro as regras da Unicamp para, depois, "chutar o balde da ética", como disse uma leitora do interior paulista. Quando foi chamada a se explicar (além da carta de Archangelo, o "Estado" fez reportagem sobre a antecipação da lista no domingo, 6 de fevereiro), a Folha deixou de responder a única questão que realmente incomodou os leitores: não disse até hoje por que razão desrespeitou a carta-compromisso.
Os outros quatro jornais não tiveram comportamento muito melhor no caso. Também assinaram o compromisso com a Unicamp, esconderam a lista e depois quiseram acusar a Folha de falta de ética no episódio. Foi como ver o roto falando do rasgado. Que ética podem cobrar da concorrência jornais que assinam cartas se comprometendo a sonegar informações a seus leitores? Que ética podem cobrar do restante da imprensa jornais coniventes com esse jogo de esconde-esconde, que só reclamam quando percebem que alguém lhes passou a perna?
A Folha errou e ainda tentou desastradamente salvar sua imagem na terça-feira, 8 de fevereiro, quando fez publicar uma reportagem em que vestibulandos da Unicamp aprovavam com entusiasmo sua iniciativa de rasgar o compromisso e publicar a lista. Sem contestações, sem o "outro lado". Mais parcial, difícil. O que o jornal conseguiu foi fazer uma apologia da "lei de Gerson", foi fazer seus leitores acreditarem que a máxima "faça o que eu digo mas não faça o que eu faço" vigora na Redação. A semana terminou sem que a Folha voltasse ao assunto ou publicasse uma das muitas cartas que devem ter chegado ao Painel do Leitor, com comentários que, a julgar pelo que li e ouvi na semana passada, não devem ser nada gentis.
Enfim, nesta história em que não existem heróis não existe, também, um só vilão. Mais do que discutir a ética do vizinho, que "chutou o balde" como bem disse a leitora, os jornais deveriam discutir sua ética própria e os acordos que andam assinando por aí. Guardar a lista de aprovados num vestibular por dois dias pode nem ter tantas consequências, além da angústia dos próprios vestibulandos e uma ou outra matrícula que não vai ser reembolsada por escolas particulares.
Mas o episódio é emblemático, e merece reflexão. O leitor está coberto de razão quando reclama da falta de ética da Folha ao romper um compromisso formal, escrito, preto no branco. Mas o que dizer de uma universidade que prolonga inexplicadamente a agonia de 18.676 vestibulandos e de cinco jornais que aceitam jogar esse jogo nas costas de seus leitores?

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