São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 1994
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Mitos e fatos

FERNANDO DE HOLANDA BARBOSA

Na economia do país do Carnaval, fantasia troca de lugar com a realidade
Como subproduto da crise que vivemos nos últimos 13 anos algumas idéias econômicas falsas têm sido repetidas exaustivamente e para alguns elas acabaram se transformando em realidade. O mito virou fato. No país do Carnaval, onde de médico e economista todo mundo tem um pouco, não se pode impedir que a fantasia troque de lugar com a realidade, ainda mais no domingo de Carnaval. Todavia, o espírito deste artigo está mais para quarta-feira de cinzas, quando a ilusão se for, o Carnaval terminar e os mitos e os fatos voltarem a ocupar seus respectivos lugares.
Mito – O equilíbrio das contas públicas é uma bobagem de economistas equilibristas que desejam zerar o déficit público.
Fato – Antes de 1936, quando Keynes publicou a Teoria Geral, o equilíbrio das finanças públicas era considerado uma virtude enquanto o déficit público era visto como um pecado. Depois da Teoria Geral, os economistas mudaram de opinião e passaram a defender a política fiscal como um instrumento de política anti-recessiva: o governo deveria produzir déficits na fase recessiva do ciclo econômico e superávits na fase expansiva, de tal maneira que no ciclo, como um todo, as finanças públicas fossem equilibradas. O déficit fiscal seria financiado através da venda de títulos públicos e os superávits seriam usados para o resgate da dívida pública.
Na situação brasileira atual a terapia keynesiana não se aplica por duas razões. Em primeiro lugar porque parte substancial do déficit público tem sido financiado emitindo-se moeda, que gera inflação. Em segundo lugar, porque o financiamento por títulos públicos é feito a taxas de juros bastante elevadas, em virtude da falta de confiança no crédito público. Ademais, a subida da taxa de juros agrava a própria situação do déficit. A conclusão óbvia é que a única alternativa que resta ao governo é zerar o déficit para não emitir mais moeda e/ou títulos. Caso contrário, o Estado, de concordatário, passará a falido no futuro próximo.
Mito – O governo deveria reduzir os impostos porque a carga tributária no Brasil é elevada.
Fato – Quando se diz que a carga tributária no Brasil é elevada confunde-se o nível dos impostos, isto é, a proporção dos impostos em relação ao Produto Interno Bruto, com a distribuição destes impostos pelos vários grupos da sociedade. Não resta dúvida que o elevado grau de sonegação fiscal transfere o ônus dos impostos para aqueles que não têm como sonegá-lo, produzindo ua situação de injustiça social.
O combate à sonegação pela Receita Federal e pelos órgãos correspondentes dos Estados e dos municípios, deve ser uma tarefa prioritária e rotineira. A punição dos sonegadores deve ser um instrumento fundamental para que a impunidade não prevaleça. Ninguém paga imposto porque gosta, mas sim porque é obrigado pela lei.
Muitas pessoas argumentam que o Estado gasta mal os recursos dos contribuintes e que esta ineficiência não justificaria um aumento dos tributos. É óbvio para qualquer brasileiro a necessidade de uma reforma profunda na administração dos recursos públicos. Todavia, mesmo que o Estado fosse eficiente, a pergunta relevante seria: o governo dispõe dos recursos necessários para erradicar as favelas, melhorar a qualidade da educação no primeiro grau e resolver os problemas da saúde neste país?
A carga tributária de um país não pode ser comparada com a de outros países para se chegar a uma conclusão se o nível é adequado ou não. Não é difícil encontrar países com carga tributária mais baixa e outros com a carga mais elevada que no Brasil.
A carga tributária de um país deve ser analisada em função dos problemas sociais e do grau de intervenção do Estado na solução destes problemas. O leitor deseja que milhões de brasileiros que vivem de maneira sub-humana continuem do jeito que estão, ou prefere sacrificar um pouco de sua renda em prol desta população marginalizada?
Mito – A inflação não é um problema prioritário pois o seu custo social é baixo em virtude do sistema generalizado de indexação.
Fato – O sistema generalizado de indexação criado na segunda metade da década dos 60 funcionou de maneira adequada até o final da década dos 70. Os economistas brasileiros se vangloriavam de que no nosso país a inflação não era um problema pois a indexação eliminava as distorções geradas pelo fenômeno. Ao longo deste período as regras nos mecanismos de indexação foram sendo substituídas gradualmente por medidas discricionárias, casuísticas, ao gosto do ministro de época. A experiência dos últimos anos mostrou que a indexação como experiência fracassou, e que um país não pode prescindir de um padrão monetário estável.
A resposta do governo à crise fiscal do início da década dos 80 foi no primeiro momento (governo Figueiredo) proceder a um ajuste transitório, ao invés de um ajuste fiscal permanente. E daí em diante, repetiu-se erros do passado, quando não agravou-se a situação, como na Constituição de 1988. A crise fiscal estancou o crescimento da nossa economia e provocou um processo hiperinflacionário que até hoje não foi debelado. A indexação financeira nestas condições funciona como analgésico para alguns, mas é inacessível para grande parte da população.
O custo social anual desta experiência sinistra é igual ou maior do que o valor total do Produto Interno Bruto brasileiro. Isto significa dizer que cada brasileiro poderia ter a sua disposição hoje o dobro dos bens e serviços que efetivamente tem. Entretanto, este custo é irrecuperável. O passado já se foi e não há como mudar a história. O que interessa é construir o futuro. Não faz o mínimo sentido, portanto, ignorar a inflação como se ela fosse irrelevante e indolor. A pré-condição para retomar o crescimento econômico em bases sustentáveis é o combate à inflação.
Mito – A inflação brasileira não tem nada a ver com a emissão de moeda, mas sim com a ganância dos empresários que aumentam os preços de maneira absurda.
Fato – Sem dúvida, a tentativa de abuso do poder econômico é um fato corriqueiro em qualquer economia capitalista. Os empresários como estratégia mercadológica procuram diferenciar seus produtos dos demais concorrentes para adquirirem poder de mercado, e cobrarem pelos mesmos preços que não se justificam pelos custos de produção e pela taxa de retorno do capital investido. Este fato existe com e sem inflação.
Ao governo compete, através dos instrumentos de política econômica, como a abertura do mercado à concorrência estrangeira, e dos instrumentos legais, coibir não somente o abuso, mas o próprio uso do poder econômico. O poder de mercado pode ser responsável por níveis de preços mais elevados em alguns setores oligopolizados, mas não por taxas de inflação crescentes, como vem ocorrendo no Brasil desde o fracasso do Plano Cruzado.
A causa fundamental da inflação brasileira é o déficit fiscal que provoca a emissão de moeda. Todavia, a eliminação pura e simples do déficit fiscal não é condição suficiente para acabar com a inflação. É preciso que o Plano FHC na sua terceira fase modifique o atual regime monetário-fiscal brasileiro, mudando as regras deste jogo viciado, em que os pobres são sempre os perdedores, para que o Banco Central tenha condições de cuidar da estabilidade da nova moeda. Caso contrário, teremos apenas uma mudança de nome, igual a tantas outras que foram feitas no passado recente.

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